"A ciência não é infalível, mas é a estratégia mais importante hoje", diz pesquisadora
Ao Diário do Nordeste, a médica Lígia Kerr, pesquisadora da UFC e integrante da Abrasco e que é do comitê técnico que orientou o Ministério da Saúde no plano de vacinação, reforça o valor da ciência
Mais de 8 milhões de contaminados e 215 mil mortos no Brasil. Rastro da pandemia de Covid-19 devastadora que, com a vacinação, deve começar a perder força. No Ceará, são 361 mil infecções e mais de 10 mil vidas perdidas. Para enfrentar esse mal, uma dimensão tem sido, e deve permanecer sendo, a base das decisões na saúde pública: a ciência, reforça a médica, pesquisadora da Universidade Federal do Ceará (UFC) e integrante da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), Lígia Kerr.
Já são mais de 30 anos como pesquisadora da saúde. De estudos aplicados em bairros, como o desenvolvido sobre Covid no Ceará, a participações em instância superiores de decisões, como no grupo técnico do eixo epidemiológico do Plano Operacional da Vacinação com o Ministério da Saúde, ocorrida recentemente. Na pandemia, ela segue dando aula na pós-graduação da UFC, fazendo estudos e orientando novos pesquisadores.
Ao Diário do Nordeste, a professora falou sobre o enfrentamento à Covid, a avaliação sobre a gestão estadual, as expectativas pela vacinação, e o dilema do combate ao negacionismo em meio às perdas de tantas vidas. Lígia conta ter "sequelas de poliomielite", efeitos de uma geração nascida em um tempo ainda sem vacina para tal mal. Por isso, reforça o valor da imunização contra a Covid-19.
No dia a dia, ressalta que "a ciência não é infalível, mas é a estratégia mais importante que temos hoje", para sair dessa e de outras crises. A pesquisadora que, por muitas vezes, diz se deparar com as infundadas contestações ao fazer científico e teorias conspiratórias que chegam, ao telefone celular, aponta perspectivas para os próximos períodos
Vivemos um momento no qual temos falado mais de ciência. Mas, em paralelo, temos uma onda de desinformação muito forte, negacionismo. Agora, está mais difícil fazer e falar de ciência? Como você percebe o atual momento?
Infelizmente, nós temos uma divisão muito forte da sociedade que é similar ao que está acontecendo em muitos outros países. Parte dela entende que a ciência é uma arma extremamente poderosa. Nós nunca podemos esquecer que a ciência é um ciclo. Coisas que acreditávamos antes, vai mudando. É por isso que a ciência está sempre renovando e tentando avançar. A ciência não é infalível, mas é a estratégia mais importante que nós temos hoje para sair da crise. E quem não está seguindo a ciência está prejudicando e matando gente. É preciso ciência junto com a cooperação da população entendendo que o coletivo tem que estar acima do individual.
É preciso que as pessoas que não querem se vacinar, lembrem que é uma exigência inclusive em outros países de comprovante de vacinação para você circular no mundo. É bastante possível que as pessoas que viajam muito sejam obrigadas a mostrar esse comprovante. Nós não voltaremos rapidamente ao normal e isso dificilmente vai acontecer a curto prazo. É possível até que tenhamos que vacinar todo ano.
Nessa pandemia, vez ou outra, surgem, sem a menor evidência científica, contestações de normas sanitárias, ou até publicações sobre tratamentos milagrosos. Isso tem um efeito muito negativo. O que, da perspectiva de uma cientista, é possível ser feito para educar sobre essa situação?
O que a gente precisa entender é que tão cedo não iremos voltar àquele normal que as pessoas esperavam, como se nada tivesse acontecido. Aconteceu. E nós temos que entender que a destruição do meio ambiente vai continuar produzindo doenças desse tipo. Se nós não pararmos de avançar sobre o meio ambiente, isso vai continuar. A pandemia tem sido um processo de aprendizado, que nós temos que tentar aprender viver em paz com a nossa natureza, sem destruí-la.
Lembrando que, de 1960 pra cá, grande parte das doenças infecciosas que apareceram como Aids, zika, dengue, chikungunya, e agora sars cov2, vieram como consequência da saída de vírus de locais que estavam vivendo em equilíbrio, porque nós destruímos. A primeira coisa é termos que aprender a viver de uma forma completa e respeitosa com a natureza. Em segundo lugar, compreender as lições dessa pandemia. O que a ciência mostra hoje? Uso de máscara. Não vamos poder deixar esse uso a curto prazo. O sentido de coletividade tem que crescer.
Na dimensão nacional as críticas ao enfrentamento à pandemia são recorrentes. Qual sua avaliação sobre a atuação das autoridades no âmbito estadual?
O Ceará seguiu o que a ciência tem mostrado e, com isso, fez lockdown em algumas situações. Existe a situação de pressão política para flexibilizar mais. Mas, na questão da vacina o Estado está absolutamente preparado. A união de instituições diferentes mostra uma coisa essencial: quando você quer vencer, tem que ser a união de todos. O Estado tem hoje condições de iniciar a vacinação com qualquer delas (tipo de vacina) que chegue aqui: Pfizer, Astrazeneca, Coronavac. O que quer que chegue, o Estado tem condições. Isso nos deixa extremamente satisfeitos. Mas, não adianta só o Ceará fazer isso.
Nós precisamos conscientizar as pessoas sobre as vacinas. Nós (Brasil) temos um dos programas mais importantes, com vacinas caras, complexas, do mundo. É conhecido internacionalmente. E, como fomos chegar nesse fosso diante de um Governo Federal que tripudia disso?
Professora, você participou do grupo técnico da Abrasco que digamos, orientou o Ministério da Saúde na formulação do plano nacional de imunização. Como foi essa experiência?
Sou da câmara técnica de um dos eixos. São 10 eixos. O que eu participei, representando a Abrasco, foi o que definiu quais seriam os grupos prioritários e em que ordem eles deveriam entrar. E foi uma luta. A gente reunia, tirava uma coisa e eles (Ministério da Saúde) faziam outra. Não o grupo técnico do Plano Nacional de Imunização, mas grupos políticos. Colocamos a população indígena, os presos, os grupos vulneráveis.
Foram muitas dificuldades, mas repito, isso não vinha dos técnicos. Coisas que nunca tínhamos visto antes, aconteceram, infelizmente. A politização das ações de saúde é uma péssima estratégia para a população. Quem sofre sempre são os mais pobres e aqueles que estão em vulnerabilidade.
Durante a pandemia, o que tem desenvolvido de pesquisa?
Com o início da Covid, nós unimos um grupo grande de instituições, especialmente do Nordeste, temos pessoas do programa de Saúde Coletiva da Universidade Federal do Maranhão, da UFC, da Fiocruz do Ceará, de Pernambuco, da Estadual e Federal de Pernambuco e Universidade Federal e Fiocruz da Bahia e da Universidade de Fortaleza e Lacen. São várias instituições trabalhando. Nos envolvemos bastante com as pesquisas de Covid. Temos projetos aprovados pelo CNPQ. Pela Funcap. Pelo Governo de Pernambuco e pelo Todos Pela Saúde do Banco Itaú.
Quem são as pessoas que integram esses grupos e o que temos especificamente no Estado do Ceará?
São áreas multidisciplinares. Temos sociológicos, nutricionistas, médicos clínicos, epidemiologistas, estatísticos, antropólogos. Uma multiplicidade de áreas que se encontram. Hoje, o conhecimento é uma coisa complexa e tentamos abordar diferentes disciplinas e profissionais para que se tenha uma dimensão maior para tentarmos responder às questões as quais nós nos propormos.
No Ceará, temos mulheres que a gente acompanha em quatro unidades de saúde que começamos a seguir para questões de arboviroses. Só que agora adicionamos um componente da Covid. Vamos pegar uma parte da população que reside em uma das áreas que foi mais afetada, que é a Barra do Ceará. Essa região teve muita infecção e estamos trabalhando quantas mulheres se infectaram, quem é a sua rede social, quantas pessoas elas conhecem que infectaram. E como essa área tem capacidade de desenvolver o que nós chamamos de vigilância popular.
Olhando para o atual momento, quais as perspectivas para os próximos períodos?
O Estado deve seguir a listagem de prioridades na vacinação do plano do Governo Federal. O que a gente espera é que, se tudo correr normalmente, a gente deve ter até a metade do ano todos os quatro grupos prioritários vacinados e a população continue a entender que não vamos poder abrir mão da máscara, das etiquetas de higiene, uso de álcool.
Saber que muita coisa ainda teremos que conhecer sobre essa doença e que, provavelmente, vai fazer com que a gente tenha que continuar com um leque de medidas preventivas. É que nem Aids, nós vamos ter um leque de várias medidas preventivas. Vamos ter que continuar utilizando todas essas medidas até que nós conheçamos mais consigamos estabelecer algumas metas mais seguras.