Alternativa para reverter casos obesidade grave, a cirurgia bariátrica ainda é um gargalo para quem depende do Sistema Único de Saúde (SUS) no Ceará. Entre 2020 e 2024, foram realizados mais de 5,6 mil procedimentos no Estado. Em média, foram 1,1 mil por ano. Contudo, desse total, menos de 10% ocorreram na rede pública.

Além dos obstáculos para conseguir o tratamento gratuito, esse pacientes enfrentam barreiras até geográficas. Só em 2024 pacientes do Interior passaram a ter a possibilidade de fazer bariátricas pela rede pública sem precisar se deslocar até a Capital.

Foi o caso de Neilton Amorim, de 49 anos, que fez a cirurgia no hospital Santé Cariri, no Crato, depois de dois anos e meio na espera. “Já vinha tentando [fazer a cirurgia] há algum tempo. Não tinha condições de me deslocar para Fortaleza, então passei um bom tempo piorando a saúde, em uma cama, sem poder andar. Eu estava desacreditado, por não ter condições de pagar por uma cirurgia”, lembra.

Na época em que surgiu a oportunidade de fazer a bariátrica, Neilton pesava 230 kg e foi o primeiro paciente com superobesidade — quando o Índice de Massa Corporal (IMC) está acima de 50 — a passar pelo procedimento no interior do Estado, pelo SUS. Em paralelo, ele convivia com hipertensão, diabetes e outros problemas de saúde.

Médicos realizando cirurgia bariátrica
Médicos realizando cirurgia bariátrica
Médicos realizando cirurgia bariátrica
Legenda: A primeira cirurgia bariátrica pelo SUS no interior do CE foi em 21 de março de 2024 no Santé Cariri
Foto: Reprodução/Hospital Santé Cariri

Neilton passou por uma cirurgia de dois tempos: a primeira foi feita em agosto de 2024 e a segunda, cerca de um ano depois, em agosto de 2025, quando ele chegou aos 148 kg. Inicialmente, ele passou por uma preparação de três meses, durante o qual precisou perder 20 kg antes e tomar uma medicação que só conseguiu com ajuda financeira de outras pessoas.

Apesar da melhora percebida para a disposição no dia a dia e em relação a outras doenças, passou a sentir dores na coluna que o impedem de realizar atividades físicas e limitam a locomoção até hoje. “Eu ando com duas muletas ou com um andador. Fora esse problema, eu estaria muito bem, de tudo”, conta ele.

O objetivo da segunda bariátrica, conforme o médico Nélio Barreto Vieira, foi aumentar a potência do primeiro procedimento, ajudar na perda de peso e permitir que Neilton faça uma cirurgia para o problema da coluna.

Neilton hoje
Neilton após cirurgia
Neilton e os filhos
Legenda: Neilton Amorim, de 49 anos, que fez a cirurgia no hospital Santé Cariri, no Crato
Foto: Acervo Pessoal

Interiorização

Após redução no número de bariátricas realizadas pelo SUS nos dois primeiros anos da pandemia de Covid-19, o Estado registrou aumento anual entre 2022 e 2024. O maior avanço foi nos dois últimos anos, quando passou de 88, em 2023, para 234, em 2024 — um crescimento de 165,9%.

Em paralelo, dados da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) mostram que a quantidade de procedimentos reduziu 23% nesses dois anos, passando de 1.678 cirurgias feitas por plano de saúde no Ceará em 2023 para 1.277 em 2024.

Segundo dados do Departamento de Informação e Informática do SUS (DataSUS), de 2008 a 2023, apenas o Hospital Geral Dr. César Cals (HGCC) e o Hospital Universitário Walter Cantídio (HUWC) realizaram bariátricas pelo sistema público no Ceará. Em 2024 e 2025, há registros de procedimentos no Hospital Geral de Fortaleza (HGF), no Santé Cariri e no Hospital Maternidade Santo Antônio (HMSA), em Barbalha.

Cirurgião e professor da Universidade Federal do Cariri (UFCA), Nélio Barreto é pioneiro na realização de cirurgia bariátrica no Cariri, onde atua desde 2006 e já realizou mais de 500 procedimentos. Ele também compôs a equipe que realizou a primeira cirurgia pelo SUS no interior do Estado, em março de 2024.

“Desde 2006 me incomodava muito essa questão dos pacientes do SUS”, afirma o médico, ao explicar que as pessoas do Cariri precisavam fazer diversas viagens até a Capital para as avaliações pré-cirúrgicas com endocrinologista, nutricionista, psicólogo e outros profissionais.

“Imagina um paciente obeso mórbido ir 10, 12 vezes a Foraleza para conseguir entrar na fila. Acabava se tornando irreal para o paciente daqui. (...) Os pacientes vinham a falecer sem se operar”, diz o médico.

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Dados do IntegraSUS, plataforma da Secretaria de Saúde do Ceará (Sesa), apontam que há 119 pessoas na fila pela cirurgia bariátrica no Estado. Essa informação foi coletada pelo Diário do Nordeste na última segunda-feira (15), considerando os seguintes procedimentos: gastrectomia com ou sem desvio duodenal, gastrectomia vertical em manga (sleeve), gastroplastia com derivação intestinal, gastroplastia vertical com banda e cirurgia bariátrica por videolaparoscopia.

Mas esse número não reflete a real demanda da população. Com o caminho para o paciente ser cadastrado nos programas específicos para bariátrica, fazer exames e a internação ser autorizada, o contingente de pessoas à espera do procedimento acaba não sendo devidamente registrado. “A gente não tem uma fila única nacional, sequer estadual”, afirma Barreto.

54,8 mil
É a estimativa do Ministério da Saúde para a quantidade de pessoas com obesidade grau 3 (IMC acima de 40 kg/m²) no Ceará, elegíveis para a bariátrica

Apenas no Santé Cariri, mais de 200 pacientes já foram operados pelas equipes do hospital desde que as cirurgias começaram a ser realizadas no Interior, em 2024. “Para ter uma noção de que realmente essa fila é grande, é uma demanda reprimida muito grande”, afirma.

A principal limitação para o sistema público, segundo Barreto, é o subfinanciamento. “Aqui no Hospital Santé, estamos fazendo uma média de 4 cirurgias por semana. Quando o mutirão (do Governo Federal) nos autoriza, chegamos a fazer de 8 a 10 por semana. Mas não dá pra pensar ‘quero operar, neste mês, 50 bariátricas’. O Governo tem que autorizar”, afirma.

Fortaleza funciona em uma realidade de superlotação. Todos os hospitais têm superlotação. Se já temos profissionais qualificados, hospitais qualificados, toda uma infraestrutura, por que não resolver aqui? É uma forma de desafogar a Capital e até uma justiça social com esses pacientes.
Nélio Barreto Vieira
Médico especializado em cirurgia bariátrica, doutor pela Faculdade de Medicina do ABC, em Santo André (SP), e professor adjunto da UFCA

A promotora de Justiça Ana Cláudia Uchôa, que atua na 1ª Promotoria de Justiça de Defesa da Saúde Pública do Ministério Público do Estado do Ceará (MPCE), explica ao Diário do Nordeste que, muitas vezes, os profissionais inserem os pacientes na fila para a cirurgia quando todos os acompanhamentos e exames já foram realizados.

“Às vezes, isso demora muito. Então, esse paciente só entra na fila mesmo quando está pronto. Com certeza essas 119 pessoas são aquelas que já estão preparadas mesmo, que já podem operar a qualquer momento”, afirma.

Ainda em 2018, a promotora conta que foi procurada por pacientes na fila para a cirurgia no Hospital Dr. César Cals, que à época havia suspendido os procedimentos. Mesmo após a retomada, o MPCE ingressou com uma ação civil pública para que o Estado garanta a realização mínima e contínua de duas cirurgias bariátricas semanais na unidade.

Pessoas protestam por acesso à cirurgia bariátrica no SUS
Legenda: Em 2018, pacientes que estavam na fila pela cirurgia bariátrica no SUS protestaram e cobraram mais agilidade dos hospitais públicos
Foto: Thiago Gadelha

Na ação, o MPCE argumenta que o próprio Estado já havia reconhecido, em manifestações anteriores, que tem estrutura e capacidade para realizar essa quantidade de procedimentos no César Cals. A medida se deu pelo receio de que houvesse nova suspensão, segundo Ana Cláudia Uchôa.

Com isso, a meta mínima seria de 104 cirurgias anuais na unidade de saúde. Informações do DataSUS apontam que o hospital realizou 74 internações para bariátrica em 2024 e 32 em 2025, até o mês de julho.

A promotora também cita a transferência de serviços do César Cals para o Hospital Universitário do Ceará (HUC), que foi noticiada pelo Diário do Nordeste no último mês de maio. “Vamos ter que ver para que pelo menos esse número não se perca. Porque às vezes, nessas transferências, fica no meio do caminho”, destaca.

“A ACP da 137ª Promotoria de Justiça de Fortaleza tramita na 9ª Vara da Fazenda Pública de Fortaleza com o objetivo de atender minimamente à demanda reprimida de pacientes diagnosticados com obesidade grave e obesidade mórbida”, aponta o MPCE, em nota. Segundo a promotora, não há previsão para que o processo seja julgado.

Em nota enviada à reportagem, a Sesa afirmou que já respondeu ao MPCE com as informações solicitadas pelo órgão na ação civil pública. A Pasta informou que o tempo de espera para a cirurgia varia conforme o perfil clínico e a evolução de cada paciente durante o acompanhamento multiprofissional exigido. Esse processo dura, em média, cerca de dois anos até que o paciente esteja apto à cirurgia.

“É realizado o acompanhamento intensivo e multiprofissional com cirurgião, cardiologista, pneumologista, endocrinologista, psicólogo, técnico de enfermagem, nutricionista, fonoaudiólogo, fisioterapeuta e assistente social”, diz a nota. Atualmente, há 16 pacientes liberados para realização da cirurgia no Hospital Geral Dr. César Cals.

Segundo a Pasta, as cirurgias no César Cals são feitas semanalmente, às quartas-feiras, por videolaparoscopia. “Atualmente, são adotadas as técnicas de Bypass Gástrico (gastroplastia com desvio intestinal em “Y de Roux”) e de Gastrectomia Vertical (Sleeve Gástrico)”, diz a nota.

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Além da cirurgia, no César Cals também são realizados outros procedimentos em pacientes bariátricos, incluindo reoperações, como a retirada de anel gástrico. “O hospital já realizou 1.260 procedimentos desde a implantação do serviço, em 2022”, complementa a Sesa.

“É importante destacar que, durante a fase de preparação, há casos de pacientes que não comparecem às consultas ou abandonam o tratamento, o que pode prolongar o tempo de espera até a cirurgia”, afirma a nota.

Quando a bariátrica é indicada?

A indicação cirúrgica para tratar a obesidade deve ser baseada na análise de quatro critérios: Índice de Massa Corporal (IMC), idade, doenças associadas e tempo de doença. Confira os critérios no quadro abaixo.

Cuidado interdisciplinar

Seja na rede pública ou privada, o processo para realizar a cirurgia bariátrica exige “uma bateria” de exames e uma preparação com equipe multidisciplinar que envolve profissionais como psicólogo, endocrinologista, nutricionista, fonoaudiólogo e dentista. O bancário Ronaldo Almeida, de 62 anos, decidiu passar por todo esse processo em 2019, quando pesava 121 kg e sentia uma série de impactos negativos no cotidiano.

“Tinha problema no calcanhar, que dificultava até caminhar, e um problema seríssimo de sono. Quando fiz a polissonografia, o médico viu o resultado e ficou muito preocupado e recomendou o uso de CPAP (dispositivo para tratar apneia do sono). Usei até a véspera da cirurgia e depois não precisei usar mais”, conta ele, que buscou a equipe do Núcleo do Obeso do Ceará, em Fortaleza, para realizar o acompanhamento.

Ronaldo em prova de corrida
Ronaldo em prova de corrida
Ronaldo em prova de corrida
Legenda: Ronaldo Almeida, de 62 anos, começou a realizar atividade física diariamente após a cirurgia
Foto: Acervo Pessoal

Após a cirurgia, Ronaldo sente que renasceu. O sono normalizou, não tem mais problema com gordura no fígado, adotou uma alimentação mais saudável e começou a realizar atividade física diariamente. “Faço caminhada e inclusive participo de corrida de rua, algo inimaginável antes da cirurgia. Já tenho uma coleção de medalhas”, comemora.

Ele conta que não cometer excessos é um desafio diário, mas que o sucesso do procedimento também depende da postura e do estilo de vida que será adotado pelo paciente. “A cirurgia é uma ferramenta. O cirurgião e a equipe multidisciplinar fizeram toda a parte deles com excelência. Agora, cabe a você manter a excelência e não jogar todo o sacrifício fora”, diz Ronaldo.

Em todo esse caminho, a saúde mental está profundamente ligada ao sucesso ou ao insucesso da cirurgia, antes e depois do procedimento, defende Andreza Pirillo, psicóloga do Núcleo do Obeso do Ceará.

“Digo que não é um item adicional, é um elemento central para a trajetória do paciente. (...) A falta de acompanhamento da equipe multidisciplinar aumenta o risco de reganho de peso e de sofrimento psicológico”, afirma.

O médico Nélio Barreto também destaca a importância do atendimento multidisciplinar no processo de mudança de estilo de vida. “Sabemos que os pacientes que não têm uma rede de apoio têm uma tendência a terem resultados piores”, destaca.

Tanto para pacientes do SUS quanto para os de planos de saúde, a avaliação psicológica e psiquiátrica é obrigatória no pré-operatório e ajuda a identificar transtornos psiquiátricos ativos — como transtorno alimentar, depressão grave ou abuso de substâncias. Também são identificadas as expectativas irreais ou fragilidades, que podem aumentar o risco de insucesso do procedimento.

A diferença entre os impactos para esses dois públicos, segundo a psicóloga, se dá pela longa espera nas filas do sistema público. “Acabam gerando ansiedade, depressão, sentimento de impotência. Às vezes até piora a compulsão, o comer emocional do paciente, e isso pode agravar algumas comorbidades que ele apresentar. Essa espera pode provocar um aumento de peso adicional que não era previsto e comportamentos de risco”, exemplifica.

Enquanto o paciente (do SUS) está na fila, a recomendação seria que ele tivesse um seguimento psicológico programado, teleconsultas quando fossem necessárias, participação em grupos psicoeducativos, talvez uma triagem periódica para ver como está o estado clínico e priorizar esse paciente, quando for necessário, fazer uma atualização do estado clínico com uma frequência maior.
Andreza Pirillo
Psicóloga do Núcleo do Obeso do Ceará

Em todos os casos, a identificação dessas questões relacionadas à saúde mental é obrigatória. Mas os tempos dos processos são diferentes. “No serviço particular, a partir do término da avaliação, o paciente já tem condição de sair com uma data da cirurgia dele. No SUS não é assim”, aponta a psicóloga.

“No SUS, o paciente tem uma data para começar e acabar, mas se precisar de um atendimento além do que é colocado, ele já não tem essa flexibilidade”, afirma Andreza Pirillo. “Acho que isso é o que mais pega, no meu ponto de vista, e a intervenção prévia aumenta bastante as chances de sucesso em relação a médio e longo prazo”, complementa.

No pós-operatório, Andreza Pirillo explica que o trabalho psicoeducativo é fundamental por até um ano após o procedimento. Esse apoio vai ajudar a prevenir recaídas, manejar compulsões, oferecer suporte para novos papeis sociais e para as mudanças de autoimagem. “Muitas pessoas sentem necessidade de reconstruir a imagem social e até afetivas, então isso é muito importante de ser acompanhado”, diz.

Depois desse primeiro ano, ela destaca que é importante realizar reavaliações anuais para acompanhar a adaptação emocional e a mudança da relação com a comida e com o corpo. Ela destaca que também existe o risco de transferir a compulsão para outras áreas da vida, como alcoolismo, compras ou atividades físicas.

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“Por isso a avaliação pré-operatória é importantíssima, porque se a gente já avalia que o paciente tem esse risco, tem que ter um olhar diferenciado no pós-operatório”, afirma a psicóloga.

Além do apoio profissional, Andreza Pirillo destaca o papel do apoio por parte de familiares para o paciente lidar com as mudanças de estilo de vida. O ideal seria que esse acompanhamento compartilhado ocorresse desde o início, mas isso não é uma realidade para todos os pacientes da rede pública.

“Eles (os familiares) ajudam no compartilhamento de experiências e, no pós–operatório imediato, (ajudam) a reduzir o isolamento do paciente. Eles passam a ser parte desse processo, entendem como isso é importante para toda a mudança que vai acontecer dali para frente. Então, eles também precisam de orientação”, destaca.

Quando o paciente apresenta algum quadro psiquiátrico ativo, como abuso de álcool ou recaída de um quadro depressivo, a psicóloga alerta que é necessário tratar esse ponto para estabilizar antes de continuar o processo para a cirurgia.

Informações da Sociedade Brasileira de Cirurgia Bariátrica e Metabólica (SBCBM) apontam como contraindicações para a realização de cirurgias para o controle da obesidade a limitação intelectual significativa, a falta de suporte familiar adequado e transtorno psiquiátrico não controlado. “No entanto, quadros psiquiátricos graves, alcoólatras e adictos sob controle não são contraindicações à cirurgia”, complementa a entidade.