Órfãos dos feminicídios: avó tenta guarda dos netos na Justiça

"A gente, que é mãe, sofre muito com a perda de um filho. Mas sofre ainda mais quando esse filho tem filhos", diz Fátima Sampaio

Escrito por Emanoela Campelo de Melo , emanoela.campelo@svm.com.br
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Legenda: Os últimos anos de Fátima e das crianças são carregados de tragédias
Foto: Fabiane de Paula / Unidade de Arte Diário do Nordeste

"Priscila era muito nova, morreu com 23 anos", conta Francisca Fátima Sampaio. A avó de três meninos viu a filha grávida com 16 anos. O segundo, nasceu quando a menina tinha 17. O outro, Priscila estava com 19. Criar os netos, para ela, nunca foi um problema. Mas desde quando a filha foi assassinada vítima de um feminicídio, Fátima esbarra em problemas, como: "você não pode assinar o aviso da escola, porque não é a mãe".

Os últimos anos de Fátima e das crianças são carregados de tragédias. Primeiro, a morte do pai de dois dos meninos. Depois, morreu o neto mais novo, violentado pelo segundo esposo de Priscila. Em seguida, a própria Priscila foi assassinada. Não demorou até que o namorado da jovem fosse decretado na facção.

"A gente, que é mãe, sofre muito com a perda de um filho. Mas sofre ainda mais quando esse filho tem filhos", disse Fátima, que agora se vê na urgência de legalizar a vivência junto às crianças de 11 e 12 anos. Em maio de 2023, ela buscou a Defensoria Pública do Ceará durante mutirão para entrar com ação de guarda dos netos órfãos.

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A defensora pública coordenadora da Rede Acolhe, Gina Moura, destaca o trabalho embasado em três pilares em prol dos órfãos dos feminicídios: acesso à Justiça, eixo saúde e o sócio-assistencial: "essas crianças precisam se conectar a outro vínculo familiar e muitas vezes são mesmo as próprias avós que perdem a guarda", diz. 

"SE NÃO FOSSE A VIOLÊNCIA..."

A vida se tornou quase que exclusiva em prol de cuidar dos meninos: "tudo para que eles não passem por mais traumas". Fátima viu de perto Priscila se envolver em um relacionamento 'perigoso' e engravidar pela terceira vez. Sabia dos maus-tratos que a filha vinha sofrendo, mas não conseguiu intervir.

"Esse homem maltratava muito a minha filha. Era violento, perigoso, mas a gente não imaginava que a esse ponto. Ele espancava a minha filha. Quando a menina nasceu, o terceiro filho dela, com dois anos, a criança morreu, porque também era espancada"

Continuou a viver sob ameaças "porque ele dizia que se ela largasse dele, ele matava os outros filhos dela". Levou 15 tiros no dia 15 de março de 2018, "passou um tempo e veio a notícia que ele também foi morto, porque era envolvido no mundo do crime", conta Fátima.

"Quando a Priscila morreu, eles tinham 6 e 7 anos. Eu não escondi nada. O mais velho era mais apegado à mãe"

Aos 12 anos, o menino, de identidade preservada, diz que a lembrança que tem da mãe é mínima, mas sofre com a falta da convivência diária: "queria que ela não tivesse morrido".

"Não sinto muita falta por que eu já era criado pela minha avó, mas fico muito triste com a violência com a mulher. Se não fosse a violência, minha mãe estaria aqui comigo e minha irmã", diz a criança.

"ELES SÃO A MINHA RAZÃO DE VIVER"

O sociólogo e coordenador do Laboratório de Estudos da Violência (LEV), Luís Fábio Paiva, diz que a "temática é difícil" até mesmo de ser estudada. Quando se fala em órfãos dos feminicídios, se depara nos anseios de acessar "uma criança que passou pela experiência não só de perder a mãe por morte, mas uma morte, muitas vezes cometida pelo próprio pai".

Cinco anos depois do assassinato, Fátima diz que precisa levar as crianças ao psicólogo, mas nunca conseguiu. "Eu nunca recebi ajuda de nada, ninguém nunca ofereceu psicólogo pra mim, pra esses meninos. Se não fossem as crianças, eu não sei como teria resistido. Sofri muito, mas eles são a minha razão de viver". (sic)

A esperança é renovada na tentativa de conseguir ser, no papel, uma mãe para os netos: "quero a guarda e quero adotar eles".

O PROCESSO DA GUARDA

Gina Moura destaca que o desamparo dos órfãos dos feminicídios vai além do quesito 'legal'. "São crianças que ficam, em um primeiro momento, em completo desamparo emocional, econômico... existem muitos casos assim, até porque os feminicídios que a gente acompanha, muitos deles, foram cometidos inclusive na presença dos filhos", afirma.

As ações de guarda são necessárias ainda para garantir possíveis direitos previdenciários, sucessórios, benefícios sociais, acesso ao patrimônio, renda e até o acompanhamento na escola.

"Precisamos pensar que em algum momento, quem vai representar essas crianças? A Rede Acolhe, o Núcleo de Defesa da Mulher, estão à disposição para esse acolhimento, para essas ações. Existe da nota parte uma preocupação latente pelos feminicídios em função da posição social da mulher, do núcleo familiar, do cuidado, das questões de natureza emocional", conforme a defensora pública.

 

 

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