Denúncias de trabalho infantil crescem mais de 62% no Ceará
Segundo especialistas, este aumento, em comparação com o primeiro semestre de 2019, foi impulsionado pelo isolamento social por conta da pandemia de Covid-19. Nos seis meses iniciais deste ano, já foram 26 denúncias.
De 1º de janeiro a 18 de junho deste ano, 26 denúncias de violação de crianças e adolescentes envolvendo trabalho infantil foram registradas no Ministério Público do Trabalho (MPT) do Ceará. O número representa um aumento de 62,5% em relação ao 1º semestre de 2019, onde foram registrados 16 denúncias. Com o quadro de vulnerabilidade das famílias e fechamento das escolas, que são, hoje, um dos principais caminhos de denúncia, a situação se agrava.
Somente entre março deste ano, quando foi confirmado o 1º caso da Covid-19, e 12 de junho, foram 20 denúncias. Além disso, o MPT instaurou seis Procedimentos Promocionais (PA-PROMO) com o objetivo de realizar o planejamento, articulação, coordenação e execução de ações preventivas para coibir o trabalho infantil. Em 2019, foram sete procedimentos deste tipo.
Crianças e adolescentes foram expostas ao trabalho infantil no Ceará neste ano.
O número de jovens nesta posição, no entanto, é ainda maior, visto que há uma dificuldade em precisar a quantidade de envolvidos no trabalho intantil já que a maior parte dos processos correm em segredo de Justiça.
Segundo o procurador do MPT, Antonio de Oliveira Lima, a maioria das denúncias envolve mais de uma criança. “Atividades ambulantes são as que mais aparecem, com entregas em mercados, construção civil, acompanhamento escolar, oficinas, etc”, avalia. Neste ano, também foram registradas atividades em ambientes insalubres. Por exemplo, segundo o MPT, duas crianças foram encontradas trabalhando em um lixão, em Aracati, e seis em um cemitério, em Fortaleza.
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“A informalidade aumenta quando aumentam as vulnerabilidades, como na pandemia. A maior parte do trabalho infantil vem das informalidades. Além disso, 80% das crianças que trabalham e estudam, atuam no contraturno escolar. Não havendo aulas, elas acabam trabalhando o dia todo”, explica Lima. “A maioria das nossas denúncias estão chegando pelo site”.
Pandemia
Segundo o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) Brasil - órgão da ONU cujo objetivo é promover a defesa dos direitos das crianças - , com base em dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), cerca de 2,5 milhões de crianças e adolescentes, de cinco a 17 anos são explorados por trabalho infantil remunerado ou doméstico no País.
- De 5 a 13 anos: o trabalho é probido por Lei;
- De 14 e 15 anos: atividades são permitidas na condição de aprendiz (com até 20 horas semanais);
- De 16 e 17 anos: são proibidas atividades noturnas ou consideradas perigosas ou insalubres.
Diante disso, em 12 de junho, o Unicef emitiu uma nota pública demonstrando preocupação com o aumento desta atividade ilegal como um “efeito secundário” da pandemia. Segundo a Instituição, com as escolas fechadas e a pobreza se acentuando, “o trabalho pode parecer, equivocadamente, uma forma de meninas e meninos ajudarem suas famílias”.
A avaliação é compartilhada por Monica Gondim, coordenadora da Secretaria de Proteção Social (SPS) do Ceará. “Nosso esforço, enquanto Estado, é apoiar os municípios nas ações de enfrentamento. São 75 cidades elencados como prioritárias. A gente faz essas atividades de fortalecimento junto aos técnicos dos Centros de Referência Especializado de Assistência Social (Creas)”, reforça.
“Neste momento de pandemia, estamos tendo reuniões virtuais quinzenalmente com as equipes para intervir, se necessário, e encaminhar fiscalizações”, aponta.
Peteca
O Ministério Público do Trabalho desenvolve, como medida de enfrentamento e conscientização, o Programa de Educação Contra a Exploração do Trabalho da Criança e do Adolescente (Peteca) nas escolas públicas do Estado. O programa está presente em 157 cidades cearenses e realiza, além da conscientização, o levantamento de denúncias junto aos estudantes.
“Nos municípios, temos grandes dificuldades, já que possuem pouca estrutura e orçamento, além de capacitação de pessoal e relações precárias de trabalho”, avalia o procurador Antonio de Oliveira Lima.
Em Quixadá, um dos municípios participantes, a pesquisa nas escolas municipais é realizada, geralmente, em abril. Porém, por conta da pandemia, foi adiada.
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“É um instrumental que recebemos da coordenação estadual em que a criança vai dizer se trabalha ou não. Ela não se identifica, mas, depois, no dia a dia, o professor consegue saber. Depois, nós passados aos órgãos de assistência, que fazem o trabalho de visita domiciliar para saber o que podemos fazer para ajudar”, explica a professora Lindélia Araujo, coordenadora Municipal do Peteca em Quixadá.
Fabricia Teodoro, assistente social e educadora em Quixadá, que coordena as Ações Estratégicas do Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (Aepeti), em Quixadá, avalia que o momento é complicado e necessita de ações preventivas para o período pós-pandemia. “A gente já vinha caminhando para uma crise social e econômico, mas com o processo pandêmico isso se agrava”, avalia,
“Dentro do sistema de educação, ele (Peteca) funciona como um suporte porque a escola é o local em que a criança passa a maior parte do tempo e onde constrói vínculos. A maioria das nossas escolas públicas, onde estão inseridas as crianças que sofrem com o trabalho infantil, não têm como ofertar esse suporte. Já era difícil presencialmente”.
Com as escolas fechadas para evitar a propagação do vírus, outros equipamentos estão sendo fortalecidos em Quixadá, como o Conselho Tutelar. "Também temos tentado fortalecer os Centro de Referência de Assistência Social (Cras), que podem ser porta de entrada para as famílias vulneráveis (são 4 na cidade), e também o Creas, onde é ofertado o atendimento às pessoas que tiveram seus direitos violados”.
Educação em Tempo Integral
Conforme os especialistas e representantes ouvidos pela reportagem, o incentivo a atividades culturais e esportivas, além da educação em tempo integral, são as principais alternativas para coibir o trabalho infantil e conscientizar pais, crianças e adolescentes sobre os prejuízos trazidos pela atividade ilegal. Para Antonio de Oliveira Lima, é necessário pelo menos 50% de escolas em tempo integral.
"Já que “82% dos casos de trabalho infantil ocorrem no contraturno escolar”, aponta.
Em nota, a Secretaria da Educação do Ceará (Seduc) informou que “o Governo do Ceará, por meio da Seduc, iniciou, em 2016, o projeto-piloto para a implantação do tempo integral em 26 escolas estaduais de ensino regular”. Em 2020, cerca de 38% da rede, composta por 728 escolas, é de tempo integral, atendendo 423 mil alunos.
“São 155 escolas regulares com esta modalidade de ensino, as quais se somam às 122 Escolas Estaduais de Educação Profissional. Ao todo, são 277 escolas que funcionam em Tempo Integral”, informou a Pasta.
Ainda conforme a Sesa, a maioria das EEMTIs está localizada entre os municípios mais populosos e foram distribuídas em áreas consideradas mais vulneráveis. Um total de 91 mil alunos, de 169 municípios, são beneficiados.
Quadro Agravado
Conforme pesquisa realizada em 418 escolas da rede pública com alunos com idades entre nove e 17 anos (totalizando cerca de 217 mil estudantes), quase nove mil crianças e adolescentes trabalharam, em 2019, no contraturno escolar. A pesquisa abrangeu 70 cidades cearenses. Com o levantamento, foi constatado que a agricultura foi a atividade que mais empregou crianças e adolescentes.
Porém, segundo Lima, há uma diferença entre as pesquisas mais aprofundadas e as denúncias que chegam nos canais oficiais do MPT, como o Disque 100, que enfrentam limitações no quadro de profissionais durante a pandemia.
“Quando a gente faz a pesquisa, o trabalho na agricultura representa o maior número dos casos. Predominante em crianças até 13 anos. Já quando recebemos as denúncias, as atividades informais urbanas se sobressaem”, explica.
Além disso, há uma limitação no reconhecimento de algumas atividades como sendo trabalho infantil, caso de jovens e adolescentes incorporados pelo tráfico de entorpecentes. “Há uma subnotificação quanto às atividades que constituem crimes. É um trabalho mais velado, com uma dificuldade de entender como trabalho infantil”, explica.
Segundo o procurador, se constatados os crimes, os exploradores podem sofrer penalidades administrativas, ou seja, multas aplicadas pelos auditores fiscais - em casos de trabalho em atividades informais urbanas, por exemplo. Caso a atividade constitua crime análogo à escravidão ou exponha a crianças ou adolescente a risco de vista, há ainda penalidades judiciais mais rígidas.
Cultura e Esporte
Já para as localidades onde não existem escolas em tempo integral, é preciso haver, pelo menos, uma “política de cultura e esporte”, sinaliza o procurador do MPT. Em Orós, no Interior do Estado, o projeto 'Aprendendo com Arte', organizado pela Fundação Raimundo Fagner, oferta oficinas de música, teatro, história da arte, literatura, e informática a jovens em vulnerabilidade.
“Tenho inúmeros exemplos para dar de crianças que pegamos na condição de fragilidade e hoje são trabalhadores, donos e donas de casa. A criança precisa de uma oportunidade educativa”, ressalta Tereza Tavares, diretora da Fundação. O projeto atende cerca de 400 famílias em Orós e Fortaleza e foi contemplado com o Edital Fundos da Infância e da Adolescência (FIA), realizado pelo Itaú Social, com R$ 396.770 para incentivar crianças e jovens.
“O papel das organizações sociais hoje é de grande importância na articulação de parcerias entre os conselhos municipais e a defesa da criança e do adolescente. Temos aqui espaços preparados para receber essas famílias", conta a diretora.
"Não podemos estar sozinhos, primeiro são as famílias, depois a escola, onde entra o papel do Estado, e depois a rede de proteção social”, avalia a representante, que, apesar dos desafios, observa melhoras. “Há 20 anos, a realidade era outra. Tínhamos que fazer denúncias anônimas. Felizmente, o Estatuto da Criança já vai fazer 20 anos”.
No contexto de pandemia, a Fundação já distribuiu 1.200 (atendidas ou não pelo projeto) cestas básicas à famílias carentes de Orós. A expectativa é que mais 1.600 famílias ainda sejam contempladas. “Em nenhum momento nossas crianças precisaram ir para a rua pedir esmola para não passar fome”, comemora Tavares, acreditando que o trabalho de assistência ao núcleo familiar é fundamental no combate à exploração infantil.
Ceará
Além do Aprendendo com Arte, outros 16 projetos cearenses foram contemplados no último edital, somando, juntos, um incremento de R$ 4.214.102,54 para ações sociais. Este ano, por conta da pandemia, as inscrições para a edição 2020 foram prorrogadas até 17 de julho e podem ser realizadas pelos Conselhos Municipais dos Direitos da Criança e do Adolescente (CMDCAs), através do site.
Além disso, todo contribuinte - pessoa física ou jurídica - pode destinar parte do Imposto de Renda (IR) aos Fundos dos Direitos da Criança e do Adolescente. Estes recursos são utilizados para financiar iniciativas voltadas a garantia dos direitos da criança e do adolescente. A opção existe há mais de 25 anos. Até o próximo dia 30, pessoas físicas podem destinar até 3% do IR por meio do modelo completo da declaração.