Em seis anos, Ceará contabiliza 153 autuações por trabalho infantil

As ocorrências foram feitas de 2013 a outubro deste ano, conforme dados via Lei de Acesso à Informação. A Prefeitura de Fortaleza foi responsabilizada em 17 casos do levantamento. Menores de 16 anos figuram entre as vítimas de exploração

Escrito por Theyse Viana e Felipe Mesquita , metro@verdesmares.com.br
Legenda: O trabalho infantil acaba por desviar muitas crianças do caminho da escola
Foto: Foto: Helene Santos

Na contramão do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que entre tantas garantias, preconiza o acesso à educação como política pública de desenvolvimento e cidadania, o trabalho infantil continua os desviando da sala de aula. Números obtidos via Lei de Acesso à Informação (LAI) quantificam esta problemática. Segundo levantamento do Ministério da Economia, moderado pelo Núcleo de Dados do Sistema Verdes Mares, o Ceará registrou 153 autuações de empresas por exploração de menores de 16 anos, de 2013 a outubro de 2019.

No intervalo de quase seis anos, a Prefeitura de Fortaleza teve 17 autuações. Outros órgãos públicos também aparecem no levantamento das penalidades, todas aplicadas por auditores fiscais da Superintendência Regional do Trabalho do Ceará (SRTB/CE), órgão que foi incorporado ao Ministério da Economia após a posse da nova gestão presidencial, no início deste ano.

A Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) determina que estabelecimentos comerciais são proibidos de empregar adolescentes até os 13 anos de idade. Ao completarem os 14, podem trabalhar na condição de aprendizes. Já entre 16 e 18 anos, ficam permitidos a exercer atividades remuneradas, mas apenas durante o dia. Contratos empregatícios que não atendam tais condições figuram como trabalho ilegal.

Enfrentamento

No Ceará, o Ministério Público do Trabalho desenvolve ações por meio do Programa de Educação contra a Exploração da Criança e do Adolescente, o Peteca. De acordo com o procurador do MPT, Antonio de Oliveira Lima, em 11 anos de existência, a atuação efetiva do órgão recuou em 70% o índice de trabalho infantil no Estado. Ao todo, 380 mil alunos de duas mil escolas distribuídas em 150 municípios são alcançadas pelo projeto.

"Uma linha de atuação que nós temos é com relação ao incentivo e estímulo à aprendizagem profissional. Adolescentes entre 14 e 18 anos são o foco dessa ação. Na faixa de 14 a 16, somente pode trabalhar como aprendiz. A melhor forma é incluir esse adolescente no programa, para sair da situação de trabalho precário. Já o adolescente entre 16 e 18 anos, ele também pode trabalhar como empregado e estagiário, desde que não sejam prejudiciais. Abaixo de 14 anos, nenhuma situação de trabalho", explica Antonio de Oliveira Lima.

O enfrentamento à precarização de atividades profissionais a menores de idade no Ceará é destacado na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (Pnad) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Se em 2009 o estudo apurou que 293 mil crianças e adolescentes, entre 5 e 17 anos, trabalhavam em condições desaprovadas; em 2016, na última publicação, o número caiu para 61 mil, uma redução percentual de 79,1%.

"Nós temos dados que apontam que em torno de 50% do trabalho infantil se dá em atividades agrícolas, os demais são comércio e serviços. Mas muda conforme o recorte etário, de 5 a 13. Se pegar atividades urbanas, 70% entre 14 e 18 anos predominam", cita o procurador do MPT.

Obstáculos

Apesar dos avanços, o combate ao trabalho infantil ainda carece de investimentos financeiros, sobretudo em áreas com histórica ausência governamental. A reflexão é da professora Raquel Coelho Freitas, coordenadora do Núcleo de Estudos Aplicados Direito, Infância e Justiça (Nudijus), do curso de Direito da Universidade Federal do Ceará (UFC). "O investimento precisa ser em melhores escolas, condições de vida, fortalecimento familiar dos pais e das mulheres que criam seus filhos sozinhas", sugere.

A professora complementa que a adultização de crianças, isto é, quando elas passam a ter responsabilidades na renda familiar, as coloca em risco. "O direito da criança não é ao trabalho: é ser criança e ser respeitada como tal. Ter o corpo e as condições físicas e mentais respeitadas, direito ao lazer, ao posto de saúde funcionando. Esses 'serzinhos' não são respeitados como sujeitos de direito. Enquanto não internalizar isso, a sociedade vai justificar falsamente o trabalho infantil", afirma.

Aos sete anos, um menino entrevistado pela reportagem andava sozinho pelas proximidades da Praça do Ferreira, Centro de Fortaleza, no horário em que deveria estar na escola da rede municipal onde é matriculado. Com tão pouca idade, já tem uma vida cerceada pela impossibilidade de ser criança. Em poucas palavras, pronunciadas com dificuldade, ele admite que não sabe reconhecer as cores e nem os números, mas havia sido ensinado a cobrar R$ 1 por cada pastilha vendida.

"Eu ficava em casa. Venho para pedir esmola, o pessoal dá. Eu também vendo pastilha e o pessoal compra. Queria ficar em casa. Não queria mais vir pro Centro, não. Não gosto, não é legal. Eu gosto de brincar de areia", revela. Ainda conforme o relato do menino, os seus pais estavam em casa. É deles a orientação para a venda da guloseima.

Prejuízos

Fatores culturais, sociais e econômicos, aliados à ausência do Poder Público, são considerados facilitadores da exploração infantil, nas palavras do procurador Antonio de Oliveira Lima. Ele alerta que a inserção precoce da criança em trabalho, potencializada pela falta de fiscalização, compromete a evolução cognitiva e gera abandono dos estudos, por exemplo.

"O rendimento escolar é menor porque ela tem menos tempo para estudar. Tem o prejuízo à saúde e alguns à moralidade. E tem o social: essas crianças e adolescentes muitas vezes estão em situação de vulnerabilidade em suas famílias. Ela acaba tendo podadas suas oportunidades de desenvolvimento social. Tem maior risco de reproduzir o ciclo da pobreza em que a família se encontra", acrescenta.

A Secretaria dos Direitos Humanos e Desenvolvimento Social de Fortaleza (SDHDS) informou, por meio de nota, que equipes vinculadas ao Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas) realizam abordagens em feiras, eventos abertos, cruzamentos, entornos de estabelecimentos e terminais para a identificação das situações que configurem trabalho infantil. Sobre as autuações alegadas pelo MPT, a Prefeitura de Fortaleza informa que "todas foram contestadas pela Procuradoria Geral do Município, e algumas estão 'sub judice'".

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