Arte do barro transforma vidas

Escrito por Redação ,
Legenda:
Foto:
Diferentes histórias de vida e experiências pessoais se encontram na fabricação de peças numa cerâmica do Crato

Crato O artesanato de barro, uma das mais antigas fabricações do homem, se renova a cada dia no trabalho dos artesãos do Cariri. Na mistura da argila, a fé católica convive com a protestante numa demonstração de ecumenismo caboclo. Ao fabricar a imagem de um santo, o artista descobriu que a veneração à imagem era maior do que sua arte. Mudou de vida e de religião. Seu companheiro de trabalho faz da arte e da vida uma brincadeira. Em silêncio, outro artesão, que trocou a enxada pela fabricação de jarros, administra o conflito de idéias, preocupado apenas com a sobrevivência. É neste ambiente da Cerâmica Silva, místico e democrático, antigo e atual, que os artesãos do Crato aguçam a imaginação.

Ele nasceu no Maranhão. Herdou dos índios a arte de transformar o barro em peças decorativas e utilitárias. Nas mãos de Iedo Silva, a argila ganha vida e toma forma de jarras, fruteiras, travessas, cabeças, panelas, cestas e potes. Evangélico, o artesão tem uma explicação bíblica para justificar seu trabalho: "Deus fez o homem do barro".

No comando de mais 15 artesãos, Iedo vai criando o seu mundo com imaginação, arte e misticismo. O barro é preparado e moldado no alpendre de sua cerâmica, localizada no Bairro Batateira, uma das comunidades mais pobres do Crato. Depois do acabamento das peças, elas são queimadas em fornos de lenha. O calor dá à cerâmica a consistência e o brilho que as peças precisam.

Mas é na Bíblia que ele encontra a motivação para seu trabalho. Iedo cita o profeta Jeremias. "Eis que, como o barro nas mãos do oleiro, assim estais vós em minhas mãos". O artesão assume a postura de pastor e explica que "precisamos entender que o Senhor espera que sejamos barro. Este material é maleável, fácil de trabalhar e de modelar. A partir do momento que cremos em Cristo, precisamos estar totalmente dispostos a aceitar o trabalho que Deus desejará realizar em nós".

O maior exemplo dessa passagem bíblica é o próprio Iedo. Antes de se converter ao protestantismo, usou drogas, perdeu a família, o crédito e os amigos. A oficina de trabalho era uma casa de prostituição. Um dia, ele descobriu que as imagens dos santos que ele fabricava eram veneradas com ardor, enquanto a sua arte era esquecida.

O artesão se auto-define "como um vaso quebrado que foi recuperado pelas mãos do maior de todos os artesãos, o Senhor Jesus Cristo".

Hoje, a sua cerâmica é uma oficina de trabalho e oração, uma escola profissionalizante que formou dezenas de jovens. A família, que ele perdeu no passado, o ajuda no trabalho. Com o barro na mão e Deus no coração, Iedo vai modelando as peças decorativas e a própria personalidade.

Uma história diferente

Já o artesão Francisco Josivan dos Santos tem uma história diferente. Afrodescendente, cantor de forró, jeito namorador, jogador de futebol, ele se dedicou à arte figurativa, inspirado no seu conterrâneo de Caruaru, Mestre Vitalino. Sentado diante de uma mesa de fórmica enquanto molda a figura de um sapo, ele delineia seus pensamentos com as peças que vão surgindo: mulheres africanas, baianas, figuras mitológicas e de época como sereias e mucamas, a denominada mulher tipicamente brasileira e animais da fauna brasileira.

Suas expressões artísticas estão imbuídas de figuras femininas, negras, ambientais e mitológicas, o que, segundo o professor Eldinho Pereira, revela suas idéias e o padrão estético implícito nos seus fazeres, assim como os tipos contidos nas narrativas populares e a palpável ligação entre cidade e campo. "Tudo vem da cabeça mesmo. A gente tenta fazer, retratando época mesmo, baseada na história", diz Josivan.

Suas vendas são, em especial, para donas de casa e lojistas do Crato e Juazeiro do Norte. São elas que pintam as peças com representações de tecidos, objetos e paisagens naturais para revendê-las a um público melhor remunerado. Para o artesão, todos valorizam a sua arte, mas as mulheres apreciam mais o que é produzido por ele.

Os instrumentos de trabalho são um palito de miolo de angico, duas facas domésticas pequenas e uns canudinhos metálicos para perfurar as peças e evitar que elas rachem no fogo.

Ele utiliza também um palito de metal para retirar o ar que fica nos cantos das peças e um pente comum para juntar um barro com outro e para modelar os cabelos de tipos femininos. No meio destes instrumentos simples, um cartão telefônico para tirar alguma imperfeição e uma chapinha de metal, útil para modelar o canto das unhas das peças que fabrica.

Todas as suas ferramentas resultam de uma criação anônima, nascida do desvio no uso de objetos comuns e que bem revelam as astúcias do povo. Os efeitos dos traços impressos no barro são obtidos com um modesto e reduzido leque instrumental. Porém, eficiente o bastante para deixar a marca autoral do jovem artesão.

Trabalho solidário e familiar

Num canto da oficina, outro artesão trabalha em silêncio. É José Fábio Marcelino, que nasceu e cresceu ao lado da cerâmica. As mãos calejadas que antes puxavam a enxada são as mesmas que, com maestria, moldam o barro na construção de vasos, sua especialidade.

Com a ajuda de dois sobrinhos e um irmão, Fábio vai construindo os seus sonhos e garantindo o seu sustento, enchendo de arte as residências. A cerâmica produz, em média, 500 peças por dia, que são vendidas por R$ 3 a unidade.

O artesão lembra que o processo começa em Nova Olinda, de onde vem o barro. A argila é cavada nas barreiras e transportada para a cerâmica, onde é misturada com outro barro. Depois de prontas, as peças são colocadas no forno. É preciso obedecer a uma técnica apurada, de maneira a que o fogo seja distribuído de modo igual para todas as peças.

A lenha é introduzida lentamente, num processo que dura de duas a quatro horas para evitar a mudança brusca de temperatura, que pode ocasionar a quebra das peças.

O tempo de cozedura é variado, dependendo da posição das peças no forno, da qualidade e da quantidade de lenha. Normalmente a cozedura é feita à noite, pois este tipo de forno não tem indicador de temperatura, tendo o oleiro que espreitar a cor das peças através de uma vigia, para saber se já estão cozidas, colocando, no caso da cozedura ainda não estar acabada, mais lenha sobre as peças mais cruas.

FIQUE POR DENTRO
Peças de barro são símbolos da cultura popular

A arte do barro é uma atividade milenar, que remonta há mais de três mil anos antes de Cristo. No Brasil, ainda hoje é uma prática muito representativa para a cultura popular. É uma herança deixada pelos índios. As índias faziam brinquedos de barro para os filhos e objetos domésticos como gamelas, tigelas, alguidares, potes. As peças eram modeladas de acordo com sua criatividade ou necessidade. As índias pintavam as peças com tintas fortes, inspiradas na natureza.

Mais informações
Cerâmica Silva
Bairro Batateira, ao lado do posto fiscal da Sefaz.
Telefone: 92482505


ANTÔNIO VICELMO
REPÓRTER