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Entenda o que é crime de guerra e quais as possíveis punições contra a Rússia

O Diário do Nordeste explica o que são esses crimes e quais consequências podem recair sobre a Rússia e seu presidente, Vladimir Putin

Escrito por Igor Cavalcante , igor.cavalcante@svm.com.br
Prefeitura de Kharkiv ficou destruída como resultado do bombardeio de tropas russas
Legenda: Prefeitura de Kharkiv ficou destruída como resultado do bombardeio de tropas russas
Foto: Sergey Bobok/AFP

A imagem de uma família ucraniana morta por bombardeios russos enquanto tentava fugir da guerra, no último domingo (6), reforçou um debate que já ocorre desde os primeiros dias de conflito entre as duas nações: os ataques contra civis. Ter como alvo os não-militares é só uma face da extensa lista dos chamados crimes de guerra, quando direitos básicos são violados em meio a um conflito entre nações.

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De acordo com a Organização das Nações Unidas, nos 11 primeiros dias de confrontos, 406 civis foram mortos na Ucrânia. Há ainda relatos de ataques deliberados contra prédios residenciais e até uso de armas ilegais. O Diário do Nordeste explica o que são esses crimes e quais consequências podem recair sobre a Rússia e seu presidente, Vladimir Putin.

Desde 24 de fevereiro, quando os russos começaram a avançar sobre o território ucraniano, quase 40 países já denunciaram Putin ao Tribunal Penal Internacional, localizado em Haia, na Holanda, e responsável por julgar violações de guerra. Quem também apura os atos é a Corte Internacional de Justiça (CIJ), principal órgão judicial da ONU. Inclusive, na última segunda-feira (7), havia a previsão de que uma delegação do país fosse ouvida na Corte, mas o grupo não compareceu. 

Toda guerra é ilícita?

No entanto, para se chegar a qualquer uma das duas cortes internacionais, o caminho é longo. O primeiro passo é entender o que pode ser caracterizado como crime de guerra. Conforme aponta o professor de Direito Internacional Público na Universidade de Fortaleza (Unifor), Paulo Henrique Gonçalves Portela, nem toda guerra é, por si só, proibida. 

De acordo com a Carta da ONU, o tratado que criou o grupo de países, há duas exceções em que o combate é autorizado.

“A guerra não é totalmente ilícita à luz do Direito Internacional. O uso da força nas relações internacionais é, de fato, proibido, mas pode ser usada mediante decisão do Conselho de Segurança da ONU ou por legítima defesa – lembrando que não existe legítima defesa preventiva, como o Putin tem invocado, isso não existe”
Paulo Henrique Gonçalves Portela
Professor de Direito Internacional Público

Segundo Portela, o Conselho de Segurança da ONU pode autorizar a formação de missões de paz, por exemplo, em que há a possibilidade de um enfrentamento militar, mas que tem por finalidade evitar uma escalada de violência ou parar uma guerra. Um dos casos mais conhecidos é a Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti, liderada pelo Brasil, para conter insurgências no país caribenho entre 2004 e 2017.

“Todos os membros deverão evitar, em suas relações internacionais, a ameaça ou o uso da força contra a integridade territorial ou a independência política de qualquer Estado, ou de qualquer outra forma incompatível com os propósitos das Nações Unidas”, diz a Carta da ONU.

O que é crime de guerra?

“Agora, independentemente de ser uma guerra lícita ou ilícita, os conflitos armados existem e também existem normas que devem ser respeitadas”, acrescenta. De acordo com Portela, o que define quais condutas se enquadram nos crimes de guerra são normas internacionais: as Convenções de Genebra, de 1949, e o Estatuto de Roma, de 1998. 

“O Estatuto de Roma faz referência, dentro dele, às Convenções de Genebra, mas ele é mais direto, mais preciso, enquanto as Convenções de Genebra são mais amplas”, pondera. No caso do Brasil, desde setembro de 2002, o País passou a se submeter ao Estatuto de Roma. O documento prevê quatro tipos de crimes: 

  • O crime de genocídio;
  • Crimes contra a humanidade;
  • Crimes de guerra;
  • O crime de agressão.

 

No primeiro grupo, estão práticas que têm como intenção destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso. Estão nesta categoria homicídios, ofensas graves, sujeição de um grupo, imposição de medidas para impedir nascimentos e transferência de crianças do grupo para outro grupo.

Já os crimes contra a humanidade incluem: homicídios, extermínios, escravidões, torturas, deportações, agressões sexuais, além de gravidez forçada, perseguição a grupos, desaparecimento de pessoas, apertheid, entre outros. 

Os crimes de guerra são os mais amplos previstos pelo Estatuto e incluem homicídios, torturas, apropriações de bens em larga escala, forçar prisioneiros de guerra a combater em forças inimigas, privação de julgamento justo e imparcial, deportação e tomada de reféns. 

A lista segue com ataques à população civil em geral ou a seus bens. Atacar pessoas ou instituições que atuam em missão de paz ou assistência humanitária também são considerados crimes de guerra, além de ataques a habitações sem objetivo militar.

 O uso de alguns tipos de armas também são vedados, como veneno, gases asfixiantes, balas que se expandem ou achatam facilmente no interior do corpo humano.

"Utilizar armas, projéteis; materiais e métodos de combate que, pela sua própria natureza, causem ferimentos supérfluos ou sofrimentos desnecessários ou que surtam efeitos indiscriminados, em violação do direito internacional aplicável aos conflitos armados, na medida em que tais armas, projéteis, materiais e métodos de combate sejam objeto de uma proibição geral"
Estatuto de Roma

As acusações contra Rússia e Ucrânia

Dessa lista, a Rússia é acusada de uma série de crimes, como ataques à população civil e aos seus bens. O presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, apontou as condutas ilegais por parte dos russos, principalmente após os ataques a Kharkiv. No dia 1º de março, por exemplo, um dos mísseis atingiu um prédio administrativo da cidade. 

O ataque contra a família que tentava fugir também ganhou repercussão mundial. As imagens mostram o momento em que pai, mãe e dois filhos tentam usar um dos corredores humanitários, estabelecidos para permitir a fuga de civis em Irpin, na região da capital Kiev. Quando o míssil atinge a família, militares ucranianos tentam, em vão, resgatar as vítimas. 

Vídeos enviados por ucranianos mostram ainda uso de munição ilegal, como bombas de fragmentação, que, quando acionadas, liberam projeteis menores que potencializam os danos. O Governo da Rússia nega todas as acusações e afirma que fazem parte de uma série de mentiras espalhadas pelo governo ucraniano.

Quem julga um crime de guerra?

Segundo o professor Paulo Henrique Gonçalves Portela, o caminho entre a prática de um crime de guerra e sua eventual condenação internacional é longo. Um primeiro obstáculo é que nem todos os países assinam os mesmos tratados. Por exemplo, a proibição do uso de bombas de fragmentação foi acordada em uma convenção de países em 2008. No entanto, nem Rússia, nem Ucrânia, são signatários do acordo. 

Portela explica que, nos casos de crimes previstos no Estatuto de Roma, os julgamentos ocorrem no Tribunal Penal Internacional, em Haia. Esta corte, no entanto, julga apenas condutas individuais, não nações. O julgamento da postura de Estados em um conflito é feito pela Corte Internacional de Justiça, da ONU – que atualmente também investiga a Rússia.

“A competência é de julgar indivíduos que cometeram crimes contra integrantes de países que são signatários do Estatuto de Roma. O Brasil é membro, então um brasileiro pode ser julgado pelo Tribunal Penal Internacional. O Tribunal também pode julgar crimes cometidos no território de países-membros, como o Brasil”, explica.

No caso da Rússia e da Ucrânia, a regra não se aplica.

“Em princípio, a Guerra da Rússia com a Ucrânia não poderá ser julgada pelo Tribunal Penal porque os países não são parte do Estatuto de Roma”
Paulo Henrique Gonçalves Portela
Professor de Direito Internacional Público

No entanto, existe uma alternativa, já que o Conselho de Segurança da ONU poderia pedir que a procuradoria do TPI investigasse e julgasse as suspeitas de crimes de guerra. “O problema é que a Rússia é membro permanente do Conselho e tem o poder de veto, então, obviamente, ela vai vetar uma instigação contra si”, afirma.

Outra ponderação feita por Portela é de que a jurisdição do TPI é “complementar”, então a Corte só age caso os tribunais internos de um país não atuem. Caso haja alguma condenação dos indivíduos envolvidos na prática criminosa no próprio país, o processo no Tribunal é extinto. 

“Com certeza, (uma eventual punição) é difícil. A diferença de poder da Rússia em relação à Ucrânia dificulta, evidentemente. Agora, a justiça interna dos países podem julgar. Os americanos cometeram crimes (no Oriente Médio) foram julgados por tribunais americanos”, finaliza o professor.

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