Multitudinário e o artigo 288 do Código Penal

Somente de modo excepcional será possível o réu cometer crime de associação criminosa armada em situação de multidão

Escrito por
Agapito Machado producaodiario@svm.com.br
Juiz federal e professor da Unifor
Legenda: Juiz federal e professor da Unifor

Em razão dos lamentáveis acontecimentos que no sábado passado (dia 22 de março de 2025) antecederam ao clássico de futebol Fortaleza x Ceará e de que o Titulo dos Crimes Contra o Estado Democrático de Direito compõe a disciplina de Direito Penal III que leciono na Unifor, desde 1985, muito antes de ser Juiz Federal, resolvi preparar esse pequeno resumo para levar a debate na próxima aula, aos meus queridos  alunos.

1.O crime multitudinário (de  multidão, de ação coletiva violenta ou crime de turba) em regra é incompatível  de  ser praticado por  associação criminosa  armada ( art. 288, parágrafo único do Cod.Penal), eis que aquele é delito de mero concurso eventual/ocasional de pessoas, praticado de maneira espontânea, desorganizada, sem vínculo prévio e sem permanência, enquanto que o de associação criminosa armada é  crime de concurso necessário, exigindo uma anterior organização /constância/permanência.

Suponhamos que A,B,C e D  se juntaram unicamente nesse ultimo sábado  e  foram  assistir ao  jogo, quando  tiveram de enfrentar torcedores do time rival. Nessa situação é evidente que  não devem  ser  sequer denunciados (acusados) de integrarem uma associação criminosa armada, salvo se o Ministério Público comprovar, ônus que lhe cabe e extreme de dúvida, que havia entre A,B,C e D uma estruturação/organização /constância/permanência  anterior ao referido clássico de futebol, com a finalidade de  provocarem brigas nos estádios de futebol e causar danos.

Somente de modo excepcional será possível o réu cometer crime de associação criminosa  armada em situação de multidão, se houver prova da vinculação a um grupo estruturado, ou se uma associação instigar ou se infiltrar em uma multidão para praticar crimes específicos.

Compete ao Ministério Público, então, também extreme de dúvida, individualizar a conduta de cada um dos A,B,C e D, pelo crime de associação criminosa armada , porque não existe responsabilidade penal objetiva,  e demonstrar que, muito antes do jogo de Fortaleza x Ceará, estavam eles previamente estabilizados, estruturados de modo permanente para irem participar de brigas nos estádios de futebol, bem como de  deteriorarem o estádio Castelão pertencente ao Poder Público Estadual.

2.O crime de abolição violenta  do Estado Democrático de Direito (art 359, L), o de Golpe de Estado(art.359,M),  e o de dano qualificado (art  163, único)previstos no Código Penal, exigem emprego de violência ou grave ameaça,pouco importando  o que A,B,C e D desejassem/pensassem/idealizassem/cogitassem.

 Não havendo prova dessas condutas  de violência ou grave ameaça, não existem tais crimes, mas sim crimes impossíveis (arts. 17 , 31 e art. 359, T,  do mesmo Código).

  3.A doutrina e a jurisprudência que antes se pacificou no Brasil, e que todos nós aprendemos nos bancos das Faculdades de Direito, é a de que a condenação exige certeza absoluta, não  bastando sequer a alta probabilidade, e que o direito penal não deve punir fatos que, nem em tese, configurem crime ou contravenção penal.            4 . O Direito Brasileiro adota  o chamado sistema acusatório, o que valer dizer: a Polícia, em regra , realiza o Inquérito Policial; o Ministério Publico, em regra, oferece a denúncia; o réu exerce sua auto defesa e a defesa técnica através de seu advogado ou defensor público e o magistrado processa e julga o réu, conferindo-lhe  o chamado devido processo legal, devendo ser competente, ensejar ao réu o contraditório e ampla defesa e não permitindo que conste do processo nenhum tipo de prova ilícita ou obtida ilicitamente.

Raimundo Nonato Silva Santos é desembargador do TJ/CE Presidente do TRE/CE

Francisco Leopoldo Martins Filho é advogado Membro Efetivo da Comissão Direito Eleitoral da OAB/CE
Raimundo Nonato Silva Santos e Francisco Leopoldo Martins Filho
25 de Março de 2025