A Penetração das Facções Criminosas nas Entranhas do Poder Público

A constatação irrefutável de que "o Estado legal foi engolido pelo Estado marginal", expõe uma realidade alarmante que vem se consolidando no Brasil: a infiltração de facções criminosas nas estruturas do poder público. Essa comprovação não apenas reflete a gravidade da situação, mas também evidencia a urgência de uma resposta eficaz e coordenada para combater o avanço do crime organizado, que avança a passos largos, enquanto o Estado parece incapaz de reagir de forma proporcional.
Essa dinâmica perversa não é um fenômeno recente, mas sim o resultado de um processo histórico de negligência, corrupção e fragilidade institucional. Ao longo dos anos, as facções criminosas têm se aproveitado de brechas no sistema para expandir sua influência, infiltrando-se em órgãos públicos, corrompendo agentes do Estado e cooptando lideranças políticas. Essa penetração não se limita às esferas locais; ela alcança níveis estaduais e federais, comprometendo a capacidade do Estado de garantir a segurança pública e a ordem social.
A expressão "Estado marginal" sintetiza a ascensão de um poder paralelo, que opera à margem da lei, mas que, paradoxalmente, se entrancou nas instituições públicas. Essa infiltração ocorre por meio de corrupção, cooptação de agentes públicos e, em alguns casos, até mesmo pela eleição de representantes ligados direta ou indiretamente a organizações criminosas. O resultado é uma erosão da legitimidade do Estado, que perde o monopólio da força e da autoridade, cedendo espaço a grupos que atuam conforme suas próprias regras.
O "Estado margina” aqui abordado não é uma metáfora, mas uma realidade tangível. Em muitas regiões do país, o poder paralelo exercido pelo crime organizado já supera a autoridade do Estado, ditando regras, controlando territórios e impondo sua própria justiça. Comunidades inteiras vivem sob o jugo dessas organizações, que oferecem serviços básicos, como segurança e assistência social, em troca de lealdade e silêncio. Essa situação cria um ciclo vicioso de dependência e medo, minando a confiança da população nas instituições públicas e perpetuando a sensação de abandono.
O avanço das facções criminosas não se limita ao tráfico de drogas. Elas diversificaram suas atividades, envolvendo-se em crimes como lavagem de dinheiro, contrabando, milícia e até mesmo gestão de serviços públicos em áreas onde o Estado está ausente. Essa expansão tem sido facilitada pela fragilidade das instituições, pela falta de um plano estratégico nacional para o combate ao crime organizado e pela ausência de políticas públicas eficazes para enfrentar as raízes socioeconômicas da criminalidade.
O descompasso entre o avanço das facções e a resposta do poder público é evidente. Enquanto o crime organizado se moderniza, utilizando tecnologia, inteligência e estratégias sofisticadas para expandir suas operações, o Estado parece estagnado em modelos de segurança pública ultrapassados e fragmentados. A falta de coordenação entre as esferas federal, estadual e municipal, aliada à escassez de recursos e à descontinuidade das políticas de segurança, cria um cenário propício para a consolidação do poder paralelo.
Além disso, a corrupção endêmica nas instituições públicas facilita a infiltração das facções. Servidores públicos, policiais, políticos e até mesmo membros do Judiciário têm sido aliciados ou coagidos a colaborar com o crime organizado. Essa corrupção sistêmica mina a confiança da população nas instituições e reforça a percepção de que o Estado é incapaz de garantir a segurança e a ordem.
A incapacidade do Estado de reagir de forma proporcional a essa ameaça é, em grande parte, resultado de uma combinação de fatores: falta de recursos, descoordenação entre as esferas de governo, corrupção endêmica e uma cultura de impunidade que beneficia os criminosos.
Diante desse cenário, a resposta não pode ser apenas repressiva. É necessário um enfoque multidimensional que inclua o fortalecimento das instituições, a promoção da transparência e da integridade, o investimento em políticas sociais e econômicas inclusivas, e a reconstrução do tecido social nas comunidades mais afetadas. A luta contra o crime organizado exige não apenas o enfrentamento direto, mas também a construção de alternativas reais para aqueles que são cooptados por essas organizações, seja por falta de oportunidades, seja por coerção.
Um dos pontos mais críticos é a ausência de um plano estratégico para o combate à criminalidade organizada. Enquanto países como Colômbia e México têm implementado políticas integradas, que combinam repressão qualificada com ações sociais e econômicas para reduzir a vulnerabilidade das populações mais pobres, o Brasil ainda carece de uma visão abrangente e de longo prazo.
A falta de um plano nacional permite que as facções criminosas se fortaleçam, explorando as brechas deixadas pela ineficiência do Estado. A ausência de inteligência policial integrada, de um sistema prisional eficiente e de políticas de reinserção social para ex-detentos são apenas alguns exemplos de como o poder público falha em enfrentar o problema de forma estrutural.
A afirmação do Presidente do TRE/CE serve como um alerta para a gravidade da situação. O avanço das facções criminosas e sua infiltração no poder público representam uma ameaça à democracia e ao Estado de Direito. Para reverter esse cenário, é essencial que o poder público adote uma abordagem integrada, que combine repressão qualificada, combate à corrupção, fortalecimento das instituições e políticas sociais voltadas para a inclusão e a redução das desigualdades.
Em suma, a afirmação de que "o Estado legal foi engolido pelo Estado marginal" serve como um alerta contundente para a gravidade da situação e a necessidade de ações urgentes e efetivas. O Brasil está diante de um desafio complexo e multifacetado, que exige a mobilização de todos os setores da sociedade para reverter essa tendência e restabelecer a primazia do Estado de Direito. O tempo é curto, e as consequências da inação podem ser irreversíveis. Caso contrário, o Estado marginal continuará a avançar, colocando em risco não apenas a segurança pública, mas a própria soberania nacional.
Raimundo Nonato Silva Santos é desembargador do TJ/CE Presidente do TRE/CE
Francisco Leopoldo Martins Filho é advogado Membro Efetivo da Comissão Direito Eleitoral da OAB/CE