A farsa da “Bíblia imutável”
Imagine um Congresso no qual parlamentares decidem que a "Bíblia Sagrada", esse livro que atravessou séculos sendo constantemente traduzido, revisado e adaptado, de repente deva tornar-se uma peça "oficial, definitiva e inviolável". Essa é a intenção de um projeto que visa "proibir alterações no texto bíblico", como se a história das Escrituras tivesse sido um repouso imutável em vez de uma longa obra em permanente reconstrução.
O autor do projeto declara querer impedir, "alterar, editar ou manipular o texto bíblico", expressão que circula solene, mas sem responder ao ponto central, qual Bíblia se pretende preservar? A católica, com seus livros deuterocanônicos? A protestante tradicional? A batista? A presbiteriana? A pentecostal? A Bíblia de Jerusalém? A King James? A Nova Versão Internacional? Fala-se em "Bíblia", no singular, como se existisse uma unanimidade textual que nunca existiu, e como se uma votação legislativa pudesse inventá-la retrospectivamente.
Em discursos inflamados, parlamentares invocam a maioria cristã do país para justificar a tutela estatal do texto sagrado. "O povo quer a Palavra protegida", dizem, como se fosse função de um Estado laico agir como guardião de uma obra religiosa. A retórica se apoia no argumento de "defender a fé", mas o resultado prático é a tentativa de transformar o governo em árbitro de cânones, algo tão absurdo que deveria ser dispensado antes mesmo de ser debatido.
Teólogos em redes sociais e em seus encontros lembram que a Bíblia nunca foi um bloco fixo. O texto hebraico original não possuía vogais, e a divisão em capítulos e versículos só surgiu séculos depois. Traduzir sempre implicou interpretar. Revisar sempre significou atualizar. Estabelecer por lei que é proibido "alterar, editar ou acrescentar" é paralisar aquilo que historicamente sempre foi um processo vivo, plural e inevitavelmente humano. A ironia é que, em nome de "proteger a tradição", tenta-se impedir justamente o mecanismo que permitiu à tradição existir.
Ao não definir qual versão deveria ser considerada "a verdadeira", o projeto cria um labirinto jurídico e teológico. Se cada confissão usa uma Bíblia diferente, qual seria a base normativa? A escolhida por votação em plenário? A determinada por acordo entre igrejas? Ou uma versão estatal, uma espécie de "Bíblia oficial da República", exibida ao lado da bandeira? A empreitada é impraticável e pretensiosa.
Há impactos concretos. Traduções para línguas indígenas dependem de adaptações profundas para tornar o texto compreensível. Com uma legislação proibitiva, essas versões seriam inviáveis. A evangelização que muitos parlamentares dizem defender seria, ironicamente, sabotada pela própria cruzada normativa.
O espetáculo é evidente. A preocupação com a Bíblia não é textual, é eleitoral. Trata-se de demonstrar zelo para conquistar aplausos, não de refletir sobre as implicações reais do ato. Usa-se o livro sagrado como palanque, enquanto os problemas concretos do país ficam em segundo plano. Fala-se em "proteger a Palavra", mas o que se protege na prática é o capital simbólico de quem invoca a fé para fins políticos. Os que pregam simplicidade moral recorrem ao aparato estatal para controlar versões e interpretações, produzindo uma comédia involuntária e de gosto duvidoso.
O debate revela que a "Bíblia" defendida por parlamentares é um artefato político, uma abstração moldada à conveniência do momento. A verdadeira Bíblia, aquela que passou pelas mãos de copistas, tradutores, monges, reformadores, filólogos, comunidades e culturas, jamais coube numa lei. Tentar congelá-la por decreto é negar sua história e sua vitalidade, e é colocar o Estado na posição imprópria de tutor da fé. A Bíblia sobreviveu a impérios, guerras e cismas sem depender de aprovação parlamentar. Transformá-la em objeto de legislação revela, ao mesmo tempo, arrogância e ignorância.
Se realmente desejam respeitar a fé, que a deixem viver. Se desejam proteger a liberdade religiosa, que mantenham o Estado afastado do púlpito. Isso é o mínimo exigível de uma república que se pretende laica, ainda que no palco político muitos insistam em vestir a toga com estola.