‘Um sonho é que as pessoas respeitem a dor da gente’, diz Caroline, após perder 4 parentes com Covid

Pai, avô, avó e tio, entes com quem a fisioterapeuta compartilhava a vida e o lar, se foram sem a oportunidade de imunização completa

Escrito por Lucas Falconery , lucas.falconery@svm.com.br
Eu Tenho um Sonho
Legenda: Caroline se fortalece nas memórias da família e na esperança de um futuro livre da pandemia
Foto: Thiago Gadelha

Todo dia 24 de dezembro a família Uchôa se reunia em volta da mesa para oração de Natal em celebração à história construída pelos avós, que saíram de Boa Viagem, no Sertão Central do Ceará, para Fortaleza. Neste ano, contudo, o dia marca nove meses da partida do pai e do tio da fisioterapeuta Caroline Uchôa, de 33 anos, que também perdeu os avós para a Covid-19.

As cadeiras do pai Jader Albuquerque Sobrinho, do tio e padrinho Sérgio Rodrigues Uchôa, do avô José Uchôa e da avó Júlia Rodrigues Uchôa estarão vazias neste Natal, mas a presença deles nunca deixará de ser sentida. Os relatos encontram expressão na esperança e saem do íntimo no período de renovação no Natal.

“Meu sonho é voltar a ser feliz de novo. Não sei se vai ser possível ter a felicidade plena, porque sempre vai ter a ausência deles”, reflete Caroline, uma das entrevistadas do Diário do Nordeste, no especial “Eu Tenho um Sonho”, que conta histórias de cearenses que não deixam de acreditar em um futuro melhor.

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Para Caroline, a crença em dias mais leves acontece no processo de imunização pelo qual os entes perdidos não puderam passar. “Eu vejo muita esperança na vacina, acredito muito até porque a gente vê os números, eu estava com meu pai no hospital e via como estava lotado e agora não está mais”, compara.

Em cerca de quatro semanas, entre março e abril deste ano, a família enfrentou sucessivas despedidas em que apenas os avós receberam a primeira parte da proteção conferida pelas vacinas. “Um sonho que eu tenho é que as pessoas respeitem a dor da gente, respeitem as pessoas que querem se proteger e não querem perder ninguém como eu perdi”.

Família
Legenda: Em menos de um mês, as partidas do tio (vestido de cinza), do avô (de branco), da avó (de roupa estampada) e do pai (de camisa amarela) de Caroline apertaram de forma diferente o coração de quem ficou
Foto: Arquivo pessoal

Ver quem não obedece as medidas de prevenção ao coronavírus e ouvir comentários sobre o fim de uma pandemia que persiste em ameaçar vidas lhe atinge como insulto. “As pessoas deixam tanto de usar a máscara que a gente fica constrangida de usar. Olham estranho para a gente”, observa Caroline.

“Minha família acabou por causa da Covid, e a gente se cuidava muito, mas as pessoas não respeitam”, frisa a filha, afilhada e neta enlutada. 

Nos nossos corações eles sempre vão estar presentes, mas fica a ausência física, eu que sempre morei com eles, e minha mãe que perdeu a mãe, o irmão e o marido, cada um com sua dor
Caroline Uchôa
Fisioterapeuta

A infância de Caroline também foi ao lado de tios e primos na casa que se tornou abrigo para a família vinda do interior. “Minha avó acabou acolhendo todos os irmãos aqui, então todos os natais os irmãos com os filhos vinham para cá. A casa era sempre cheia, mas no Natal era sempre uma grande festa”, lembra.

Registro
Legenda: A memória da família é resgatada no registro do último Natal em conjunto
Foto: Thiago Gadelha

Novos casamentos e laços foram se estabelecendo e mudando a programação do Natal, mas o lar permaneceu abrigando Caroline com a mãe, pai, tio e avós.

“A gente não tinha uma tradição muito específica de Natal, fazíamos nossa ceia, antigamente, à meia noite. A gente sempre fez nossas orações antes de ceiar, mas como eles já estavam idosos não aguentavam ficar acordados até esse horário”, comenta sobre os últimos anos.

Éramos nós todos os dias, éramos nós no Natal, éramos nós em qualquer hora e em qualquer situação
Caroline Uchôa
Fisioterapeuta

O amor pela família fez com que a fisioterapeuta deixasse o espaço onde cresceu para evitar a contaminação. “Eu fiquei com medo de passar com eles, porque eu sabia que a minha condição de profissional da saúde poderia gerar algum risco e acabei mudando para um apartamento em outubro do ano passado”.

Varanda
Legenda: Caroline busca alívio da dor em meio às ausências impostas pela pandemia
Foto: Thiago Gadelha

No último Natal juntos, Caroline preparou a ceia e o ambiente para receber apenas o núcleo familiar. Entre sorrisos e o aconchego dos abraços, a família se aninhou na sala de estar.

O 24 de dezembro de 2020 fica na memória como o dia em que a família Uchôa conseguiu se encontrar como gostava. O registro, que ilustra a notícia dos lutos em sequência, “é a última foto que tem todo mundo junto”, como destaca.

“Meu pai pegou a Covid em março e todo mundo pegou. Os quatro faleceram e ficou só eu e minha mãe”, resume Caroline. “Ser feliz depois de tudo que a gente passou agora é um sonho”, traduz.

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