Por que vacinas contra a Covid-19 não causam doenças? Entenda falso rumor com relação à Aids
Interpretação errada de estudo internacional aponta desenvolvimento de doença causada pelo HIV; especialistas refutam falas deturpadas e frisam segurança das vacinas contra a Covid-19
Na busca por alcançar grande parcela da população com a proteção completa contra a Covid-19, cientistas definem a fala do presidente Jair Bolsonaro - associando a vacina com o desenvolvimento da Aids - como equivocada e perigosa. O falso rumor pode ser atribuído aos estudos que analisam como a tecnologia usada em múltiplos tipos de vacina pode impactar o sistema imunológico, mas os imunizantes aplicados têm segurança comprovada por profissionais da área.
O vídeo em que o gestor aborda o assunto foi transmitido ao vivo na quinta-feira (21) e removido do Facebook e do Instagram no domingo (24) após as plataformas terem considerado o conteúdo como falso. “Nossas políticas não permitem alegações de que as vacinas de Covid-19 matam ou podem causar danos graves às pessoas”, como afirmou um porta-voz do Facebook. Nesta segunda-feira (25), o conteúdo também foi apagado do YouTube.
A informação falsa de que as vacinas contra a Covid-19 poderiam causar a Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (Aids) pode ser associada a uma interpretação equivocada do artigo publicado, no fim de 2020, na revista internacional The Lancet sobre o assunto. Os pesquisadores avaliam se o adenovírus do tipo 5 pode deixar o corpo mais frágil à infecção pelo HIV.
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“Existe um estudo mostrando pacientes que tomaram alguma vacina com a composição relacionada ao adenovírus com uma porta de entrada maior para o vírus HIV, que mais fácil entre na célula e cause uma doença, mas não é uma afirmação”, explica o biomédico e virologista, Mário Oliveira.
O especialista detalha que o artigo usa dados de outras vacinas com esse tipo de tecnologia, aplicadas em anos como 2007 e 2010, e não relacionada à Covid-19. “Essa fala negacionista é para mostrar que a vacina não funciona, mas não é isso. O estudo foi deturpado de maneira a causar um impacto na população”, conclui.
Dependendo da forma como o adenovírus vai interagir com as células do corpo pode deixar uma suscetibilidade maior de ser contaminado pelo vírus HIV mais facilmente. Após a contaminação, o vírus pode mais facilmente entrar na célula
Mário Oliveira frisa que durante o processo de vacinação não acontece nenhuma infecção pelo vírus HIV. O que se estuda é como a tecnologia de vacinas com adenovírus poderiam deixar o organismo mais frágil à infecção pela doença de outras formas. “A janela imunológica da Aids é muito grande e dizer que (a vacina) vai causar a doença é muito forte. Pode-se dizer que se torna mais suscetível à infecção pelo HIV”, reforça.
O Departamento de Saúde e Assistência Social do Reino Unido afirmou que a publicação citada pelo presidente tem origem de um site com informações falsas. O Serviço Nacional de Saúde Britânico (United Kingdom National Health Service) incentiva a população britânica a receber as doses dos imunizantes.
Em publicação nas redes sociais, as autoridades de saúde do Reino Unido dizem que "vacinas são a melhor proteção que nós temos contra viroses perigosas como gripe e Covid-19":
Vaccines are the best protection we have against dangerous viruses like flu and COVID-19.
— NHS (@NHSuk) October 24, 2021
Find out if you’re eligible for these two essential vaccines now at https://t.co/Znt4BcmoMe pic.twitter.com/81SVBlzZiy
Efeitos da divulgação de informações falsas
Os prejuízos nesse caso são duplos com a divulgação de informações erradas sobre Covid-19 e Aids, como analisa Felipe Magalhães, farmacêutico e microbiologista. “Além de a gente ter, nesse tipo de declaração, o problema relacionado com a diminuição da busca por vacinas pelas pessoas que acreditam nessas fake news, isso aumenta o estigma que os pacientes com HIV sofrem”.
Felipe reforça a necessidade de os pacientes soropositivos receberem a dose de reforço após 28 dias da aplicação da segunda dose da vacina contra a Covid-19. “Muitos dos pesquisadores e de quem trabalha com ciência e imunologia receberam essa informação com certa perplexidade, porque vindo da principal autoridade do país isso tem um peso muito grande”, relata.
Não existe motivo racional para adiar ou não receber a imunização contra o coronavírus, como avalia o especialista. “Não tem nenhum problema e, na realidade, os benefícios que nós temos na utilização de vacinas superam de uma forma infinitamente maior os possíveis riscos que possam ter do uso das vacinas”, destaca.
A quem diz não se sentir seguro pela rapidez com que os imunizantes foram produzidos, Felipe Magalhães pondera sobre os longos processos científicos até alcançar a tecnologia suficiente para esse tipo de produção. “Quando se fala que as vacinas podem ter um risco maior porque foi desenvolvida há pouco tempo não é uma verdade. A técnica usada na produção é relativamente antiga, tem mais de 30 anos, a única diferença é que a gente utilizou um vírus novo”.
Impacto na campanha de imunização
Deixar de receber as vacinas contra a Covid-19 vai contra o objetivo de sair do isolamento social e não precisar do uso de máscaras em um contexto de disseminação de variantes. “A gente tem que lembrar que a vacina é uma estratégia coletiva e é importante que a comunidade esteja imunizada para que a circulação viral se reduza e, aí sim, o número de doentes diminua”, reflete o imunologista Edson Teixeira.
O também professor do Departamento de Patologia e Medicina Legal da Universidade Federal do Ceará (UFC) lembra de como as vacinas são usadas como defesa desde 1796 - com a criação do imunizante contra a varíola. “As vacinas são absolutamente seguras e nós não temos relatos, apesar de todas essas bobagens, de nenhum óbito causado por vacinação de Covid-19. Dificilmente se associa um evento de letalidade às vacinas, sejam elas de Covid ou outros tipos de vacina”, reforça.
Edson Teixeira frisa que é impossível contrair outra doença ao receber uma vacina mesmo que sejam utilizados vírus para a fabricação dos imunizantes. “Normalmente as vacinas utilizam os organismos de forma atenuada, ou seja, mais ou menos debilitados, mas que mantém a estrutura proteica, que pode estimular a resposta imunológica. Esse tipo de vacina ainda é muito utilizada, por exemplo, na tríplice viral, a gente utiliza vírus atenuados e são vacinas seguras”, exemplifica.
Além disso, o especialista destaca os novos processos na busca por métodos modernos de imunização contra doenças. “A tecnologia tem avançado tanto que hoje estamos utilizando vacinas acelulares, ou seja, vacinas que não utilizam o microorganismo, mas parte de ou a informação para que se produza uma parte desse microrganismo, como é o caso das vacinas de RNA mensageiros”, acrescenta.
Repercursão nacional
A Sociedade Brasileira de Imunologia (SBI) publicou nota para destacar que "nenhuma vacina desenvolvida contra a Covid-19 pode causar Aids e que também nenhuma vacina tem o potencial de transmitir o vírus do HIV".
O texto ressalta que as vacinas para protegem contra a gravidade da doença, inclusive em pacientes imunossuprimidos e portadores de HIV. "Reforçamos que a vacinação é a forma mais segura e eficaz de prevenir doenças e salvar vidas. Vacinar é agir em prol do coletivo, é um compromisso com toda a sociedade", frisou a SBI.