"Podemos entrar em fevereiro com a situação muito pior do que no começo da pandemia", diz Nicolelis

O coordenador do Comitê Científico de Combate ao Coronavírus do Consórcio Nordeste avalia que os estados nordestinos se saíram melhor na gestão de ações da pandemia, alerta para um possível aumento de casos e pelo agravamento da transmissibilidade com a chegada de novas cepas

Escrito por Barbara Câmara , barbara.camara@svm.com.br
nicolelis
Legenda: Miguel Nicolelis é coordenador do Comitê Científico de Combate ao Coronavírus do Consórcio Nordeste
Foto: Fotos Públicas

O neurocientista Miguel Nicolelis, coordenador do Comitê Científico de Combate ao Coronavírus do Consórcio Nordeste, fez uma alerta ao Brasil. De acordo com ele, "ou o país entra num lockdown nacional imediatamente, ou não daremos conta de enterrar os nossos mortos em 2021". Em entrevista ao Sistema Verdes Mares, o cientista fez severas críticas ao Governo Federal por não haver planos concretos em relação à vacina ainda no País, defende que não deve haver Carnaval e avalia que Fortaleza fez um lockdown efetivo. Nicolelis também adianta que veremos os números de casos e óbitos decorrentes da Covid-19 crescerem. "Isso é extremamente preocupante, porque isso ainda não conta com os casos de infecção durante as festas de fim de ano, que devem entrar provavelmente do meio pro final de janeiro. Então podemos entrar em fevereiro com uma situação muito pior do que estávamos no começo da pandemia".

 

Havia esperança de que em 2021 a pandemia fosse menos severa que em 2020. Mas por qual situação epidemiológica atual estamos passando? 

A gente tinha uma expectativa de que houvesse uma segunda onda no Brasil, porque era uma expectativa comum e os modelos sugeriam que existia essa possibilidade. Só que muito provavelmente nós tivemos, com as eleições e as campanhas eleitorais, um efeito de aglomeração adicionado ao que já vinha sendo produzido pelas aberturas econômicas em todo o Brasil. E o que estamos notando, a partir da primeira semana de novembro, é que em todo o país as curvas de crescimento de casos começaram a aumentar muito rápido. Em um grande número de localidades, esse aumento foi mais rápido do que em março, no começo da pandemia. São comparáveis a períodos como junho, que também teve crescimento muito grande. 

Só que, diferente da primeira onda, esse aumento está ocorrendo inclusive em regiões que demoraram muito mais a ter casos, como no Sul e Centro-Oeste. Agora é o Brasil inteiro que está tendo crescimento de casos, e na região Sul, por exemplo, esse aumento é o maior de toda a história da pandemia, em termo de aceleração de casos ao longo do tempo. 

Temos agora, ao invés de uma progressão serial, que foi da costa pro interior, de uma região pra outra,  todas as áreas têm aumento de casos simultaneamente. Isso é extremamente preocupante, porque isso ainda não conta com os casos de infecção durante as festas de fim de ano, que devem entrar provavelmente do meio pro final de janeiro. Então podemos entrar em fevereiro com uma situação muito pior do que estávamos no começo da pandemia, em fevereiro do ano passado. E isso não deveria ter acontecido.  

Por que isso aconteceu? Era esperado?

Aconteceu por erros de manejo a nível federal, e também pelas aberturas precoces que foram feitas, e pela campanha eleitoral que nunca deveria ter ocorrido. Nós falamos na época, em junho e julho, que as eleições deveriam ter sido adiadas, não foram, e nós estamos pagando o preço por isso agora. E se soma isso ao fato de que não temos um planejamento claro que como vai ser a vacinação do País. Enquanto 40, 70 países já têm suas campanhas nas ruas, nós aqui estamos brigando pra saber qual a vacina, quantas vão ter, quantas doses, quando vai começar, quem vai organizar, enfim. Estamos ainda perdidos nessa questão. 

A cepa mutante que começou a circular na Europa e já foi detectada em São Paulo também influencia nesse alerta? 

Sem dúvida alguma. Desde o dia 1º de novembro nós temos sugerido que o espaço aéreo brasileiro internacional deveria ter sido fechado, por causa da segunda onda europeia. Era quase esperado que teria novas cepas, porque a taxa de mutação do vírus é muito alta. Agora nós temos duas grandes preocupações. Uma é a cepa inglesa, e outra é da África do Sul, que também parece ter um grau de transmissibilidade aumentado, ela infecta mais do que as cepas que conhecemos aqui no Brasil. 

E o espaço aéreo brasileiro ainda não foi fechado. Só no dia 30 de dezembro começou a se exigir de turistas que vêm do exterior que apresentem certificado de não-infecção. Mas isso já é tarde. Deveríamos ter fechado o espaço aéreo em novembro, e devemos fechar agora, porque a preocupação que entra no radar é o que vai acontecer no carnaval.  

As festas oficiais deveriam ser todas canceladas. Pra mim, não há dúvida. Mas evidentemente a gente já viu que mesmo com essa posição, as pessoas ainda vão querer fazer festas, e nós vamos estar em um momento muito difícil, principalmente se não tivermos uma campanha de vacinação nas ruas. 

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O senhor mencionou o lockdown como a única alternativa contra o novo aumento de mortes, mas depois da primeira vez a população se mostrou resistente a uma nova. Como conscientizar melhor sobre o motivo dessa medida? 

Primeiro, queria deixar claro que o lockdown funcionou no Brasil. Em Fortaleza, em São Luís (que talvez tenha sido o melhor lockdown do país), na grande João Pessoa, em Recife o efeito foi claro. São Luís continua estabilizado até hoje, muito provavelmente por esse lockdown que foi feito em um momento mais crítico.  

Então quando nós sugerimos o lockdown para o Nordeste, nós temos provas da efetividade. Uma das únicas capitais que não seguiram a recomendação, que foi Salvador, está pagando o preço até hoje, em número de casos e mortes. A primeira coisa que nós precisaríamos era liderança política que disseminasse a mensagem pela população de que, na falta de uma vacina e outras terapias medicamentosas, essa é a única coisa que nós podemos fazer pra evitar o colapso do sistema de saúde. 

Temos que ajudar a população não só a entender, mas sobreviver esse lockdown. Temos que ter uma ajuda federal para as pessoas poderem ficar em casa, sim. Mesmo que seja por duas ou três semanas. 

Se eu tivesse que falar para a sociedade como um todo, eu diria que nós temos que ter um esforço comunitário coletivo. O Brasil é extremamente hiperconectado, pela malha rodoviária e aeroviária. Então o lockdown é um aliado, e não o inimigo. É um dos poucos aliados que funciona de verdade, com comprovação mundial. E é uma coisa temporária, não para sempre. 

Como o senhor avalia o plano nacional de vacinação para o Brasil? Ele está bem definido? Há pontos que foram deixados de lado? 

Nesse momento, ele é como um queijo suíço, cheio de buracos. A gente não tem a menor ideia do cronograma. Várias reuniões já foram marcadas, o presidente do Consórcio Nordeste organizou várias reuniões pra tentar extrair o cronograma de vacinação e não conseguiu. Ontem mesmo tinha uma reunião do Ministério da Saúde, que aconteceu, mas não houve a liberação do cronograma.  Não sabemos nem que vacinas vão ser usadas, e ontem nós descobrimos que nem seringas o Brasil tem o suficiente para fazer uma campanha de vacinação nacional. Então, é um fracasso completo. E nós temos que dizer isso dezenas de vezes.  

Como está a situação do Nordeste nessa fase atual? Existe alguma peculiaridade na região? 

O Nordeste está há muito pouco tempo de ser a melhor região do país em termos de casos e óbitos por 100 mil habitantes. Ou seja, das cinco regiões brasileiras, o Nordeste está em quarto lugar em número de casos e óbitos. Em pouco tempo, ele ficará na liderança como melhor taxa.  

Eu costumo dizer que todos os “alunos da pandemia” no Brasil foram reprovados, mas alguns conseguiram se sair melhor do que os outros. O Nordeste parece ter se saído muito melhor. Todavia, não se pode subir em um pedestal e deixar de fazer o que funcionou na primeira onda, e melhorar ainda mais. E fazer tudo que deveria ter sido feito, mas não foi. Está na hora de melhorar, em prol de reduzir ainda mais a taxa de óbitos por 100 mil habitantes, e mostrar que quando você acredita na ciência a nível regional, que deveria ser a nível do país, os resultados são evidentes, claros e quantificáveis. 

O resultado pode ser melhor, se os gestores nordestinos continuarem a ouvir o que a ciência tem a dizer pela frente.