Pirambu: conheça a história da maior favela de Fortaleza
Originada a partir de migrantes fugindo da seca no Interior, a comunidade resistiu a políticas de higienização social e agora luta contra os efeitos devastadores da pandemia.
Apesar do estigma histórico do termo, elas são territórios de potencialidades: as favelas concentram uma população expressiva nas cidades brasileiras e, neste dia para celebrá-las, provocam reflexões sobre políticas de urbanização, infraestrutura e identidade. A sétima maior do País fica no Ceará: o Pirambu, em Fortaleza, cujas origens remontam há quase 100 anos.
Oficialmente, para a Prefeitura Municipal, o bairro tem 17,7 mil habitantes, segundo a plataforma Fortaleza em Mapas. Porém, o último levantamento do IBGE, com base no Censo de 2010, dá conta de pelo menos 42,6 mil moradores, porque avança sobre áreas vizinhas para formar o “Grande Pirambu”.
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Historiadores explicam que a formação de favelas na Capital cearense ocorreu a partir das migrações causadas pela seca, com multidões fugindo da miséria e da fome, principalmente em 1877, 1915 e 1932. Em 1888, a planta da cidade já registrava casebres nas proximidades da orla marítima central, onde hoje fica o Arraial Moura Brasil.
Na década de 1930, a instalação de indústrias e a construção do Porto do Mucuripe impulsionaram a ocupação em outras favelas, incluindo a do Pirambu - nome de um peixe comum na área. Ela é considerada um prolongamento do Arraial e foi formada a partir do campo de concentração do Urubu.
A historiadora cearense e doutoranda em História e Espaços pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Angerlânia Barros, lembra que a orla ainda não tinha símbolo de status e funcionou como espaço de "contenção e controle dos migrantes”, justamente para impedir a proliferação de favelas.
Tentativas de extinção
Nos anos 1940, os ricos se afastaram da área da Jacarecanga e do Centro, devido à poluição e “invasão” de seus territórios por operários das fábricas, e fixaram moradia na Praia de Iracema e no Meireles. Já naquela época, a imagem do Pirambu foi atrelada a uma zona perigosa, de miséria, criminalidade e prostituição.
Nas décadas seguintes, houve sucessivas tentativas de erradicar o Pirambu, até mesmo por influência das políticas de ordenamento promovidas pela Ditadura Militar. Porém, Angerlânia explica que a própria população, em parceria com a Igreja Católica, resistiu.
O Moura Brasil foi erradicado em 1970, para a construção da Avenida Leste/Oeste, mas porque os próprios moradores queriam sair daquela realidade. Já o Pirambu era mais engajado, organizado. A Marcha do Pirambu, em 1962, foi a primeira marcha periférica da cidade, quando os moradores pediram para permanecer e dizer ao Governo: 'nós existimos’”.
Resistência organizada
Aos 68 anos, o metalúrgico Carlos Careca é um dos moradores mais antigos do bairro. Nasceu em 1953, “na beira do mar”, quando a paisagem ainda era tomada por morros e coqueiros, mas carente de eletricidade, saneamento e pavimentação.
Para ele, a comunidade só teve a crescer a partir da Marcha, quando começou um movimento reivindicatório e efervescente apoiado pelo padre Hélio Campos. “Começaram vários grupos de jovens, foram se criando associações, e o Pirambu ficou muito forte”, reconhece. Carlos, porém, não se entristece com os estigmas do bairro.
Cedo eu compreendi como esse pode ser o bairro mais importante financeiramente pra cidade, mais até do que a Aldeota. Ele é o caminho para chegar e sair da praia, e em cinco minutos você está no Centro. Tem coisa mais maravilhosa?
O metalúrgico se orgulha da trajetória do bairro e comemora que, até hoje, a comunidade realize festividades comuns, como Natal e Ano Novo, e consiga conversar na calçada, mantendo viva a identidade da área.
O arte-educador Fábio Lessa, 40, também nascido e criado no Pirambu, conhece desde cedo o contraste entre a imponência do mar e a situação de vulnerabilidade da comunidade que perdurou por muitos anos.
“Antes do calçadão da Vila do Mar, só tinha areia, barracos e esgoto, que era onde a gente brincava. A minha família mesmo tinha muita dificuldade, mas tinha o mar para acalmar a nossa alma”, afirma, lembrando que ainda hoje ocorre a pesca do peixe-símbolo do bairro.
Assim como Carlos, ele não se intimida com os “Vixe!” que escuta ao contar onde mora porque conhece a potência dos movimentos sociais e da cultura tradicional da área, que mistura as influências do litoral com as raízes sertanejas.
Sou favelado com orgulho. Nasci e me criei aqui e não sou o que muitas pessoas pensam. Até porque a violência não é só aqui. Viver de forma simples não quer dizer que você não é importante”
O também líder comunitário relata que a pandemia prejudicou de forma drástica o sustento de muitas famílias, muitas delas autônomas, comprometendo até mesmo a comida na mesa. A mobilização característica do bairro permitiu a arrecadação de doações para amenizar parte do problema. “A gente não perde a fé e vai trabalhando junto”, conta.
Favelas ganham espaço no Ceará
A falta de um Censo Demográfico atualizado atrapalha a mensuração correta de áreas de favela em todo o País. Até 2010, ano da última análise oficial, 396.370 pessoas viviam em favelas em Fortaleza. As cinco maiores eram, segundo o IBGE:
- Pirambu - 42.878 moradores em 11.630 domicílios
- Lagoa do Coração (Vicente Pinzón) - 19.256 moradores em 5.185 domicílios
- Alto do Bode (Autran Nunes) - 16.495 moradores em 4.326 domicílios
- Gina's Motel (Barra do Ceará) - 14.293 moradores em 3.830 domicílios
- Borba Gato (Parque Genibaú) - 12.950 moradores em 3.572 domicílios
Estudos do IBGE, ainda que por projeção, indicam um crescimento expressivo nesses territórios. Em 2010, o Ceará tinha 442 mil pessoas vivendo em aglomerados subnormais, um termo guarda-chuva que abrange diversos assentamentos irregulares, como favelas, invasões e baixadas.
À época, eram 121.165 domicílios em 14 cidades do Estado. Já em 2019, último ano de análise do Instituto, já eram 243.848 domicílios em aglomerados subnormais, em 37 municípios. Porém, não houve projeção de habitantes.
Angerlânia Barros observa que a expansão recente de favelas no Ceará e no Brasil é reflexo da desigualdade social e da falta de políticas públicas efetivas de habitação.
“Quem precisa mais são pessoas sem assistência básica e que não têm outra alternativa a não ser se fixar em favelas ou bairros periféricos. As capitais são grandes polos de atração, mas quando chega um pobre, ele não vai ter acesso a essa moradia”, analisa.
Segundo Preto Zezé, presidente global da Central Única das Favelas (Cufa), a pandemia agravou problemas estruturais já existentes nas comunidades, como desemprego e dificuldades de acesso à saúde e à educação - sobretudo com déficit e evasão escolar.
“Vamos ter de preparar um mutirão de agenda de inclusão social, melhoria de condições econômicas e de saúde, e como ativar toda e qualquer forma de geração de renda dentro das favelas”, explica.
Origem da data
O dia 4 de novembro é reconhecido internacionalmente como o Dia da Favela desde 1900, ano em que, pela primeira vez, o termo “favela” apareceu em um documento oficial - mas não de uma forma positiva.
Foi no Rio de Janeiro, quando o chefe da Polícia da época, Dr. Enéas Galvão, redigiu um documento se referindo ao Morro da Providência como favela, defendendo que ele precisava ser limpo de valores imorais.
Esse Morro é considerado a primeira favela do Brasil e foi ocupado em 1897, tanto por combatentes vitoriosos da Guerra de Canudos, que chegavam à cidade sem dinheiro e sem moradia, quanto por ex-escravos que lotavam a cidade após a abolição.
O termo “favela” é uma referência ao Morro da Favela, ocupado pelos soldados no povoado de Canudos (no interior da Bahia), que era coberto por uma planta conhecida como faveleira.