“Pegava 6 ônibus, mas deixei”: 4 a cada 10 passageiros deixaram de usar o transporte em Fortaleza
Estimativa é de que sistema público deixe de realizar, de forma permanente, 6,9 milhões de viagens após pandemia
O fechamento de comércios e serviços e a orientação de manter o distanciamento fizeram despencar o número de passageiros nos ônibus de Fortaleza. Maio de 2021 registrou queda de 44% nas viagens em relação a janeiro de 2020 – cerca de 4 a cada 10 fortalezenses têm deixado de usar o transporte público.
Em maio de 2020, período do primeiro lockdown, o sistema teve a menor demanda de toda a pandemia: dos 23 milhões de embarques mensais, só 5 milhões foram realizados naquele mês, uma redução de 78%.
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No isolamento social rígido de 2021, a tendência se repetiu: em março deste ano, menos de 10 milhões de viagens de passageiros foram contabilizadas, 57% a menos do que antes da crise sanitária. Os dados são da Empresa de Transporte Urbano de Fortaleza (Etufor).
“Pegava 6 ônibus por dia, mas deixei”
A pandemia foi determinante para Karolina Sousa, 33, abrir mão de usar o transporte público. Moradora de Maranguape, na Região Metropolitana, ela pegava seis ônibus todos os dias para chegar à universidade, no bairro Pici, e depois voltar para casa.
Como eu já sabia como um vírus funciona, que sofre mutação e é difícil controlar, tive medo de pegar ônibus, voltar pra casa e infectar meus pais idosos.
A solução, então, foi antecipar os planos de comprar um carro – apesar da insegurança financeira diante da crise econômica e do fato de ser bolsista de doutorado na Universidade Federal do Ceará (UFC).
“Mas me vi na situação de ter que comprar. O lockdown foi em março, comprei o carro em maio. O fator decisivo foi o medo da Covid mesmo, para segurança minha e da minha família”, relembra.
“Pra mim, é uma mudança permanente”
A estudante Beatriz Crisóstomo, 24, moradora do bairro Monte Castelo, também trocou o transporte público pelo particular. A locomoção hoje é feita por meio de caronas ou carros por aplicativo, alternativas encontradas após a chegada da pandemia.
“A gente fica com medo de andar num veículo tão pequeno, apertado, abafado e sempre com muita gente ao nosso lado. E ainda tem a demora de esperar na parada”, pontua.
O longo tempo aguardando pelo ônibus, aliás, já incomodava antes mesmo da crise sanitária: Beatriz chegava a esperar 1 hora pelo veículo. “Pra mim, acho que vai ser irreversível, uma mudança permanente. Não pretendo voltar a andar de ônibus de jeito nenhum”, sentencia.
“30 linhas não pagam nem o combustível”
Apesar da queda brusca na pandemia, a redução da demanda de passageiros em Fortaleza é uma tendência anterior à crise, como observa Mário Azevedo, professor do Departamento de Engenharia de Transportes da Universidade Federal do Ceará (UFC).
O movimento, segundo ele, já era ocasionado pela recessão econômica: com menos pessoas no mercado de trabalho, menos passageiros precisam embarcar diariamente. Assim, a frota disponível reduz, os ônibus lotam mais, e o serviço se torna menos atrativo.
Mas a qualidade em si não pesa tanto, porque as pessoas não têm escolha. A cidade é grande, pra trabalhar precisa de ônibus, às vezes não dá pra ir a pé ou de bicicleta. Quem não tem dinheiro pra comprar um veículo, tem que usar.
Dimas Barreira, presidente do Sindiônibus, aponta que “esse processo começou em Fortaleza em setembro de 2015, e desde então a demanda só cai aceleradamente”. “A tendência de haver mais opções de transporte toca muito duramente o sistema de ônibus. O individual é muito conveniente pra quem usa, mas não pra cidade”, pontua.
O gestor e a Etufor afirmaram que não é possível informar qual a frota de veículos operando atualmente, "uma vez que é muito dinâmica, muda todos os dias".
mais: esse é o espaço que cada pessoa que deixa o ônibus e passa a usar transporte particular ocupa nas vias, estima o Sindiônibus.
Outro fator que diminui a procura por ônibus é o perfil “policentro” que Fortaleza tem adquirido. “Há shoppings e serviços em vários bairros, reduzindo a movimentação. E o golpe mais duro veio em 2016, com a chegada dos apps. Mais de 30 linhas não pagam nem o combustível”, lamenta Dimas.
Segundo o presidente do Sindiônibus, mesmo as projeções mais otimistas acreditam que, no máximo, 70% dos usuários de antes vão retornar ao sistema – de modo que 3 a cada 10 passageiros deixarão de utilizar ônibus de forma permanente após a pandemia.
Custeio pelo governo municipal
Hoje, o sistema é pago pelos próprios usuários, com as passagens de ônibus. Com menos “financiadores”, tudo fica mais dispendioso. A solução, como avalia o presidente do Sindiônibus, seria a Prefeitura de Fortaleza bancar a operação.
As empresas são só operadoras: e não dá mais pra viver só de quem paga a tarifa, isso acabou. É uma autofagia.
O professor Mário Azevedo concorda que a solução seria boa, “desde que a prefeitura tivesse dinheiro, e não é o caso”. “Isso funciona em países da Europa: o serviço existe com ou sem passageiros e qualquer que seja o preço da passagem”, explica.
O modelo é previsto pela Lei Federal 12.587/2012, conforme a qual a “tarifa de remuneração” deve ser paga ao operador pelo poder público cobrindo os custos totais pelo serviço prestado
No Brasil, quem tem dinheiro é o Governo Federal, as prefeituras não têm recursos. O problema do transporte público deveria ser tratado em nível nacional, porque é uma necessidade básica, como saúde e educação.