Órfãos da pandemia: o luto e a saudade de cearenses que perderam pai ou mãe vítimas de Covid

Para pessoas que lidam com a falta dos familiares, psicóloga recomenda o respeito ao tempo para elaborar a partida e o sentimento de vazio

Escrito por Redação ,
Cemitério Bom Jardim recebe pessoas mortas por Covid no Ceará
Legenda: Cemitério Bom Jardim, equipamento público de Fortaleza, recebeu grande parte das pessoas que morreram de Covid-19 na Capital
Foto: Paulo Alberto

De uma palavra de conforto e uma conversa trocada no café da manhã até os abraços compartilhados antes de dormir e os aprendizados do cotidiano, a perda dos pais para Covid-19 deixa um vazio no peito daqueles que já não têm mais os pilares de suas vidas. Entre dores, tristezas e saudades, tateiam caminhos e formas de seguir vivendo, apesar da imensa falta

Para a assistente de atendimento, Maria Geliane Pinheiro, 36 anos, a dor da perda foi dupla, quando, após perder o pai para a doença, em 8 de maio de 2020, sua mãe também se foi em decorrência do coronavírus, 11 dias depois. Nesse processo, contou principalmente com o suporte a distância de amigos, familiares e psicólogo.

“É um acontecimento que não é nada bom. As pessoas não podiam se aproximar de mim, porque como eu estava indo para UPA, para hospital, podia estar contaminada. Foi um momento muito difícil, que eu nunca imaginei passar”, afirma.

"Sinto muita falta até do cheiro da minha mãe"

Acostumada com o chamego da mãe, a professora aposentada, Maria Nilzete, 75 anos, e a preocupação de seu pai agricultor, Francisco Antônio, 76 anos, a partida dos dois deixou um vazio em seu peito que ainda ressoa a cada dia que vaga pela grande casa sem a presença dos dois. “Eu passei a viver sozinha, é muito difícil. Sinto falta de tudo, de tudo mesmo. Sinto muita falta até do cheiro da minha mãe”, relata. 

Após quase um ano desde a partida, Geliane percebe estar mais fortalecida, apesar de eventualmente viver dias de choro e saudade. “Ainda hoje eu não consigo dormir sozinha, tenho muitos medos. Eu imagino que eu ainda esteja vivenciando esse processo de luto, mas sinto que estou superando, aos pouquinhos, sinto que é Deus que hoje está me ajudando”, conclui. 

Legenda: Os pais foram como faróis iluminando os caminhos de Maria Geliane, estando presente para dar forças em todos os desafios enfrentados ao longo da vida
Foto: Arquivo pessoal

Dez meses de saudade

De forma similar, a técnica de enfermagem Francineide Moraes Brandão, 41 anos, também carrega a saudade e o luto após a perda da mãe na noite de 4 de maio de 2020. Dona Maria José faleceu aos 79 anos depois de uma parada cardíaca causada pela Covid-19. Era a segunda-feira da semana do Dia das Mães, data que pela primeira vez marcou o vazio da partida.

“Para os que vivem essa dor, digo que chore, que sinta saudade, que os dias vão passando e você vai pensando que a dor vai diminuindo cada vez mais. É ruim você saber que nunca mais vai ver aquela pessoa, nunca mais vai estar com ela”, compartilha.

Filha fala sobre mãe após a perda para a Covid-19
Legenda: A honestidade e o cuidado com o próximo são alguns dos aprendizados de Maria que Francineide leva para a vida
Foto: Arquivo pessoal

Depois de perder o pai para uma parada cardíaca em 2000, Francineide viu o vínculo com sua mãe se intensificar ao longo dos últimos vinte anos. “Era só nós duas. Ela dormia no quarto comigo. E mesmo depois de casada, eu sempre ia para a casa dela”, diz. 

Agora restam as lembranças e os ensinamentos deixados pela mãe. Dona de um sorriso tímido que chegava aos olhos, Maria tinha fala mansa e sempre muito amor para dar. “Em casa, ela sempre me recebia com todo amor e carinho”, aponta a filha.

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Tendo tido a aposentada como companheira do cotidiano até os 37 anos de idade, período em que se casou e saiu de casa, percebe a figura materna como insubstituível. “Ainda hoje sinto a mesma dor, ainda está muito vivo, sinto falta dela todo dia e é minha filha que tem me dado força. Ocupado a minha cabeça”, conclui. 

Órfãos do amor da vida

Pedro, Paulo e Lucas, com respectivamente 16, 15 e 6 anos, são os frutos de um amor de infância que se concretizou na juventude. Filhos do operador de câmeras Francisco Paulo Ferreira Martins, 43, e da dona de casa Clesy Maria Fernandes, 36, resultaram de cuidados e partilhas de mais de duas décadas compartilhadas no caminhar da juventude para a vida adulta do casal.

Clesy faleceu no dia 25 de junho de 2020, após lutar por dois meses contra a Covid-19. Após sua morte, Francisco precisou assumir o papel de pai e mãe, para resistir ao delicado momento e manter a família unida e forte. 

“Tive três meses de muita luta interna dentro de mim. A psicóloga me ajudou muito e os livros sobre morte também. Hoje eu procuro deixar a dor e as lembranças enterradas. Se eu lembro, ela dói muito”, aponta. 

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Legenda: Sempre presente e atenciosa, vestia um sorriso no rosto mesmo durante os piores momentos
Foto: Arquivo pessoal

Para o filho do meio, Pedro Davi, os primeiros meses foram dolorosos e desafiadores. “Antes de perdermos ela, sempre tínhamos alguém que cuidava das nossas coisas mesmo sem a gente pedir, e infelizmente agora sem ela, temos que cuidar das nossas coisas só, fazer nossa própria comida e arrumar a casa”, relata Pedro Davi.

Apesar da dor da perda ainda permanecer, assim como a saudade dos afagos diários, sente estar mais fácil de lidar com a ausência. “Confesso que no começo foi muito difícil. Hoje em dia está bem mais fácil em fazer as coisas, mas a dor da perda ainda continua”, finaliza. 

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Lidando com o luto 

Conforme a psicóloga e especialista em pediatria, Maria Juliana Vieira Lima, o luto é um processo natural que está atrelado com as experiências de perda ao longo da vida, podendo variar a depender da pessoa. “Requer tempo para ser vivido. Não é do dia para a noite que a gente vive essa questão. Precisa ter um tempo para elaboração”, aponta. 

Nesse período, é normal a presença de manifestações como a tristeza, o choro e a saudade, podendo haver até mesmo alguns sintomas físicos, como a insônia, dificuldade de memória e falta de atenção e de apetite. No caso de crianças, recomenda uma conversa acolhedora, mas que seja direta e sincera, sem utilizar recursos como “virou uma estrela” ou “foi fazer uma longa viagem”. 

“Não existe uma superação, porque dá uma sensação de que ela vai ter que esquecer, ou apagar aquela pessoa da sua vida. O mais importante é que aquela pessoa amada vai continuar para sempre na nossa vida, nas nossas memórias, no que a gente construiu e aprendeu com ela”, finaliza. 

 

 

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