No dia da visibilidade, pessoas trans relatam desafios e orgulho de conquistas nas universidades
Dificuldades no acesso e permanência em cursos de graduação e pós são realidade no cotidiano do aprendizado da população trans no Ceará
Talvez os salões do Congresso Nacional jamais esqueçam da data em que viram nascer, a muitos brados, o Dia Nacional da Visibilidade de Transexuais e Travestis, há exatos 17 anos. Desde então, esta população nunca se apequenou frente à luta por direitos, produto de incontáveis dias de luta. Essa história se escreve, ainda, com páginas de orgulho e, sobretudo, por quem não cansa de buscar mais e altas conquistas.
O dia 29 de janeiro é marcante pois, anualmente, faz alusão à conquista de direitos e à consequente insistência da população transexual para a garantia dos mesmos. Foram conquistas na saúde, convivência social e, principalmente, educação. Nesta última área, os desafios são parte do cotidiano. O Diário do Nordeste conversou com três pessoas trans sobre a construção de quem se é por entre os muros das universidades.
Ensino
Como quem ora ao tempo, a travesti e professora universitária Luma Andrade, 43, transformou um cenário de dor e incompreensão em pura afeição. "Eu sempre quis a escola, mas a escola não me queria", relembra. Deixava de ir aos intervalos, temendo a agressão persistente dos colegas, até passar a insistir para os pais agricultores e para a direção que a deixassem estudar à noite. Por fim, integrou-se. "Deixaram. E foi nesse turno que conquistei meus primeiros amigos, ajudando, com os estudos, quem não podia se dedicar durante o dia", lembra.
Ainda nessa época, assumiu a verdadeira identidade. "Eu não via outra alternativa para viver, fora ser eu mesma". A "feminilidade aguçada", como chama, a seguiu pelo Ensino Médio, indo até o Ensino Superior e além. "Foi muito difícil. E é por isso que entendo a condição de quem vai se assumir apenas tempos depois, com estudos concluídos, no seu emprego, num lugar mais seguro", defende.
Hoje, considerada a primeira travesti a concluir doutorado e a ser aprovada para a docência numa universidade pública no Brasil, Luma assume: houve evolução com o passar dos anos. "Na minha época ninguém discutia gênero na escola ou na Academia. Era muito sofrimento sem que professores, servidores, gestores, ninguém visse que era um problema a ser resolvido. Hoje, com dispositivos legais e garantia de direitos, está tudo mais fácil", acredita.
Luma, atualmente vivendo em Lisboa, Portugal, estuda a vivência de transexuais na cidade europeia. Para ela, o cenário, não só em universidades, será melhor quando pessoas trans passarem a ter mais consciência de seus direitos.
"Precisamos de fissuras no sistema. É necessário também mais representatividade em lugares de tomadas de poder, como no governo, além de articulação da rede de apoio a nós. Muito se fala de nós para sensibilizar a população. Mas chega de discurso. Precisamos de ações", garante.
Pesquisa
O estudante de comunicação social da Universidade Federal do Cariri (UFCA), Cauê Henrique Ayo, 22, defende um mundo de ciência feita por e para pessoas trans. "Às vezes, enfrentamos o fato de que professores apenas nos projetam como as pessoas trans que eles já conhecem, e que temos que fazer a pesquisa deles. Até eu encontrar um projeto ideal, que me estimulasse, foi 'muito chão'", conta.
A tentativa de Cauê vai de encontro ao que define como "mesmice da ciência universitária". "Precisamos pensar em quem tem o privilégio de pesquisar no Brasil. Já não é fácil para uma pessoa cis, imagina para uma trans. A gente muitas vezes não tem acesso ao ensino básico, imagina ao de universidade. E quando chegamos, temos empecilhos em fazer de nossas pesquisas um manifesto", acrescenta.
O aluno estuda imagem e semiótica no Limbo (Laboratório de Imagem e Estéticas Comunicacionais) da UFCA. Para ele, a falta de estímulo é o fator mais agravante. "A melhor forma de estimular é dar condições para fazermos ciência, saciarmos nossas perguntas", enfatiza.
"Vi muitos colegas que tiveram que abrir mão da universidade. São necessárias políticas de permanência e não só de entrada. A universidade tem de deixar de ser esse local privilegiado apenas para quem tem condições financeiras, e cisgêneros (pessoas que se identificam com o gênero de nascimento)", diz Cauê.
Extensão
A estudante de História da Universidade Estadual do Ceará (UECE), Ana Paula Braga, se define em sofismas: "Costumo dizer que somos do tamanho do que projetamos, então me projeto bem grandiosa". Com o sonho de cursar pós-graduação fora do país, já estudou inglês e francês.
"Quero estudar psicopedagogia, para entender as situações complexas que permeiam a vida dos alunos. Primeiro pela minha história; segundo, porque acredito que vai ser um grande ganho para a área; e terceiro, pra que eu sirva de modelo pra quem vem depois de mim. O que eu planto hoje, vai ser colhido pelas travestis de amanhã", explica.
Ana Paula relata ainda a insistência do sentimento de inferioridade. "Tenho que entender que esse ambiente não foi feito pra mim, que ele, em si, me segrega. Tenho, todos os dias, que dar 110% de mim, se eu der 100%, não terá sido suficiente".
Além de aluna, Ana Paula é pesquisadora da influência dos povos africanos e semitas na formação da cultura helênica, além de professora no projeto de extensão "Transpassando", que auxilia transexuais no vestibular. "É um projeto acolhedor e, independentemente da aprovação, eles se sentem pertencentes à universidade", diz a diretora do Centro de Humanidades da Uece, Adriana Barros.
Políticas
Procuradas pela reportagem, instituições de ensino superior responderam sobre suas políticas de acesso da população trans a esta etapa do aprendizado. A Uece citou estratégias gerais para permanência dos alunos, como cotas no vestibular, programas de assistência estudantil; sobre ações estratégicas, mencionou o próprio projeto Transpassando.
A Universidade Estadual comentou ainda que cursos de Mestrado Interdisciplinar, como por exemplo os em História e Letras, já preveem no edital a reserva de vagas para pessoas trans.
A UFCA, por sua vez, citou que estudantes trans têm assegurado o uso de nome social em todos os documentos da universidade, inclusive na Cerimônia de Colação de Grau, na lista de chamada, no documento de identidade estudantil e no e-mail institucional.Por lá, existe também o auxílio estudantil a alunos de baixa renda, "independentemente da identidade de gênero".
O Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE) não tem ainda o levantamento com números precisos a respeito de estudantes travestis e transexuais, e destacou medidas como a mediação de conflitos e situações de sofrimento em virtude de preconceito e exclusão.
A Universidade Federal do Ceará (UFC) teve 69 registros de solicitação do uso de nome social para estudantes de graduação desde 2013 a janeiro deste ano, com a Resolução Nº 32/2013 do Conselho Universitário (Consuni).