Linha de frente: o compromisso, o medo e a solidão dos profissionais

A rotina de médicos, enfermeiros e demais agentes da saúde misturou a expectativa da sociedade em relação aos cuidados com os doentes, assim como as suas dores e alívios diante da maior crise sanitária da história recente

Escrito por Theyse Viana , theyse.viana@svm.com.br
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Legenda: Médico há 30 anos, Fernando Barroso considera que o momento mais crítico da pandemia foi quando o sistema de saúde de Fortaleza entrou em colapso
Foto: Thiago Gadelha

Ser essencial nunca foi tão difícil. Em meio ao caos provocado por um inimigo invisível, muitos puderam fechar as portas e ficar por baixo das cobertas. Para isso, outros milhares tiveram de se expor à guerra sanitária – como os profissionais da saúde, envoltos diariamente num receio, o de contrair o novo coronavírus e levá-lo para casa, e numa missão, a de evitar ou aliviar as dores das vítimas de uma doença que já matou e segue acometendo milhares no Ceará. 

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Para Melissa Medeiros, médica infectologista do Hospital São José (HSJ), em Fortaleza, o pior período não foi o pico, mas o início da pandemia, em março. “Minha filha ficou com os meus pais, em isolamento total. Foi a primeira vez que a gente se distanciou por tanto tempo, eu só os via da sacada. Foi uma despedida parecida com filme, porque a gente não sabia se ia se ver de novo, nem quando. Esse distanciamento foi muito forte”, relembra Melissa, que atua no HSJ desde que era residente, há 21 anos. 

Apesar das duas décadas de experiência, foi em 2020 a primeira vez que a médica se afastou do trabalho por doença, após ser diagnosticada com Covid-19. “O dia 1º de maio, quando comecei a ter os sintomas, foi um divisor de águas pra mim. Vem sempre o pensamento sobre como vai evoluir, se vai dar tudo certo ou não, se vai complicar, se vai precisar internar. Foi um período de muita incerteza, pessoal e profissional. Nessa hora a gente se vê como ser humano, também. Como pessoa”, pontua. 

Os sintomas, felizmente, foram leves, mas deixaram transformações como sequela. “Às vezes, você acha que tem muito tempo, mas 2020 mostrou que talvez não tenha. Essa pandemia me fez ver que preciso estar mais com os meus pais, vi muita gente perder os seus. Aproveitar mais a família, os momentos pequenos em dias de domingo, jogando jogos de tabuleiro. Achamos que existe o próximo fim de semana, mas as coisas acontecem do dia pra noite”, reflete Melissa, indicando que despertou, inclusive, para realizar os sonhos que tinha para a carreira. 

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Legenda: Já a infectologista Melissa Medeiros aponta o início da pandemia, em março, como o período de maior crise
Foto: Thiago Gadelha

Sonho 

“Profissionalmente, tem sido um período bom, me sinto muito útil pra sociedade. Pude me envolver mais com pesquisa, que era um grande sonho. Eu pensava em trabalhar mais com isso futuramente, escrever mais. Mas sempre deixava pra amanhã, adiava. Agora, vejo que o amanhã tem que ser o agora”, conclui a infectologista, que compara a rotina dos profissionais de saúde à curva da Covid-19 no Estado do Ceará: “a demanda era enorme, exaustiva, mas agora que tá em queda, conseguimos respirar”. 

Legenda: "Essa pandemia me fez ver que preciso estar mais com os meus pais", reflete a médica Melissa Medeiros
Foto: Fabiane de Paula

Antes disso, porém, era tudo sufoco. Médico há 30 dos 55 anos de vida, Fernando Barroso, chefe do Serviço de Onco-Hematologia do Hospital Universitário Walter Cantídio (HUWC) e professor, se viu sem respostas. “A humildade bateu na porta do médico – se já era, ele precisou ser mais ainda. Atuamos com metodologias científicas, mas houve um momento em que ficamos em conflito sobre o que fazer, porque não havia tempo hábil pra decisões baseadas somente na ciência. Precisamos reconhecer que não sabemos”. 

Dedicado a um ofício “que não separa humano de profissional”, Fernando elege como momento mais crítico aquele em que o sistema público de saúde em Fortaleza colapsou. “A gente já vivia aquela angústia pessoal, familiar e coletiva sobre a doença, e isso se juntou ao fato de precisarmos de um suporte e não termos, no período em que a nossa cidade praticamente não tinha mais leitos”. 

Com a ausência de colegas que contraíram a doença ou se afastaram por terem comorbidades, contudo, manter-se firme era lei. “Tive que ir pra linha de frente. Não tem como, não tendo nenhuma doença, você se isentar de estar ali. Fiz três exames ao longo desse período. Todos negativos. Mas do ponto de vista emocional, mexe muito com a gente”, assume o hematologista, narrando, ainda, um caso em particular que agravou a angústia. 

“Uma menina transplantada de medula, curada de leucemia, contraiu Covid e ficou muitos dias internada, com quadro pulmonar muito grave. Emorreu. Curada de leucemia, morreu de Covid. É muito doloroso, forte e impactante pra gente perder um paciente desses, porque tudo o que ocorreu antes, todo o esforço pra tratá-la...”, relata Fernando, com as reticências preenchendo a lacuna que ficou. 

Legenda: Médico há 30 dos 55 anos de vida, Fernando Barroso se viu sem respostas
Foto: Thiago Gadelha

Junto às lembranças do que vivenciou na lida com a doença, entretanto, ficaram também os ensinamentos além da ciência. “A principal lição é que a humanidade como um todo precisa repensar seus hábitos, costumes e valores, acima de tudo. Muita coisa que a gente achava essencial deixou de ser. Isso obriga você a repensar todos esses processos, buscar uma simplicidade pra vida e entender do que realmente precisa”, finaliza. 

A enfermeira Manuela Martin, 32, que atua há oito anos na profissão, entendeu que precisava ainda mais da família, da praia, de ver filmes, de “conversar besteira” na casa da irmã e de assistir ao futebol de domingo com o pai. Durante os meses mais intensos imersa no combate à Covid-19 em Fortaleza, Manuela chegou a trabalhar por 27 dias seguidos, na tentativa de driblar um dos sentimentos mais fortes que experimentou: a solidão. 

“Fiquei três meses sem ver meus pais e minha sobrinha pequena, e doeu muito. Teve o dia das mães, fiz aniversário em maio e passei sozinha em casa. Recebi bolo, cesta de café da manhã, e assim as pessoas ficaram presentes. Maio, além de ter sido o pico da pandemia, foi o pior período pra mim. Eu chorava muitas vezes quando chegava do plantão, então preferia ficar trabalhando direto. Não queria ficar refletindo sozinha quanto tempo levaria pra ver minha família de novo”, relembra. 

Legenda: Manuela Martin, enfermeira do Hospital Geral de Fortaleza (HGF)
Foto: Arquivo pessoal

Experiência 

Além do impacto pessoal, Manuela reconhece que, quando a pandemia acabar, sairá uma profissional melhor. “Querendo ou não, essa crise abriu portas. Pessoas sem experiência puderam começar a trabalhar. Eu tinha experiência, mas consegui entrar numa rede hospitalar grande devido à pandemia. Foi uma coisa muito cruel, não tem lado bom, mas foi preciso isso pra capacitar profissionais, dar oportunidade de crescimento”, reconhece, afirmando, ainda, que a união entre os colegas será outra herança do caos vivenciado. 

“Os próprios colegas tinham preconceito com quem atuava na ala Covid. Ficamos cada vez mais isolados e acuados no próprio local de trabalho, mas muito mais unidos. Só quem vivencia isso sabe o que é. E como dizem: ‘quem estava com você nas trincheiras importa mais do que a própria guerra’. Isso fez toda a diferença pra ninguém cair”.

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