Em 6 meses da pandemia de Covid-19 no CE, dores, aprendizados e descobertas reinventam trajetórias

Ainda não há soluções definitivas para a crise sanitária da Covid-19. No Estado, os efeitos do coronavírus são sentidos oficialmente há seis meses. São rastros que têm acumulado perdas, sequelas, recuperações e ensinamentos

Escrito por Emanoela Campelo de Melo e Thatiany Nascimento , metro@svm.com.br
Luís Alberto
Legenda: Luís Alberto Rodrigues, de 65 anos, chegou a desenganado pelos médicos ao apresentar os sintomas da Covid-19
Foto: Fabiane de Paula

Há seis meses, a pandemia do novo coronavírus atravessa oficialmente as rotinas no Ceará. Tempo demais para quem segue desgastado trabalhando na linha de frente. Tempo de menos para a ciência que corre em busca de soluções. Tempo incontável para os mais 8,6 mil lutos. Tempo de esperança para quem padeceu da doença, mas se recupera. Uma crise sem precedentes, severa e duradoura, e que deixa lições como se rastros fossem, em uma travessia de medos, descobertas, saudades, sequelas; perdas e vitórias; verdades e incertezas.

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Não se sabe ao certo o dia em que o novo coronavírus começou a circular, nem por onde chegou. Não há como prever os males que irá acarretar. Seis meses depois, é preciso seguir atento. As lições deste momento transformam de sobreviventes a combatentes da nova doença. Ainda não terminou, mas o momento já é de reinvenção da vida cotidiana. 

Perder olfato e paladar a curto ou médio prazos é prejuízo mínimo diante das vidas abreviadas. Já são mais de 227 mil casos de coronavírus e 8,6 mil mortes no Ceará. Em paralelo, no Estado, 202 mil pessoas se recuperam da Covid-19. O registros de quem adoeceu são estatísticas, mas as histórias se cruzam e vão além, muito além. Influenza, resfriado, pneumonia. Não saber identificar qual doença e o medo do vírus ter invadido o lar, a si mesmo. 

No dia 13 de maio, Luís Alberto Rodrigues, 65 anos, foi pela primeira vez ao hospital com falta de ar. Medicado, melhorou e voltou para casa. Horas depois, respirar ficou ainda mais difícil. A segunda ida resultou em quase um mês de internação. Quando tentava puxar o ar, Luís percebia a gravidade da situação. Depois, as lembranças se tornaram vagas. Foram 15 dias em uma Unidade de Terapia Intensiva (UTI) e mais 17 na enfermaria. 

Legenda: No dia 13 de maio, Luís Alberto Rodrigues, 65 anos, foi pela primeira vez ao hospital com falta de ar
Foto: Fabiane de Paula

Uma batalha para sobreviver 

Desenganado pelos médicos, foi indicado à família do paciente que autorizassem o custeio de um remédio de quase R$ 10 mil. A necessidade era imediata. Uma vakinha online feita pela filha de Luís, Tayna Alcântara, ajudou a reunir a quantia. O uso da medicação deu resultado. O contador teve alta hospitalar no dia 15 de junho. Segundo ele, dali em diante, tem sido uma nova vida. Apesar da dificuldade, há aprendizado. 

“Só quem sabe é quem passa. Por isso que eu bato na tecla que as pessoas precisam se proteger sempre. A lição que eu tirei desse momento foi sobre a importância de ter os amigos perto. Gente que eu nem conhecia e que me ajudou. Gente que eu não tinha contato, há anos, e quando soube que eu estava doente, procurou minha família para fazer alguma coisa”.

Legenda: "A lição que eu tirei desse momento foi sobre a importância de ter os amigos perto", lembra Luís Alberto Rodrigues
Foto: Fabiane de Paula

No caso da designer Meg Banhos, o corpo do pai, Eliton Banhos, contaminado pela Covid, saiu de casa carregado por profissionais do Sistema de Verificação de Óbitos (SVO). O idoso, embora tenha procurado ajuda, não chegou a ficar internado. Na época do óbito, em abril, as orientações sobre quando buscar hospital ainda eram incipientes. A família, conta Meg, seguindo o que vigorava à época, optou por não levar o idoso imediatamente a uma das unidades hospitalares. Hoje, Meg garante: o procedimento seria outro. Uma lição delicada e dolorosa desses tempos difíceis. 

“Quando meu pai faleceu, dois dias depois, minha mãe teve sintomas também. Pensei, é melhor levar ela do que morrer em casa. Queira ou não a gente fica pensando que podia ter evitado”, avalia. A mãe de Meg foi instantaneamente conduzida ao hospital. As marcas profundas do luto sentido refizeram a trajetória desta família. Após dias internada, a mãe se recuperou. 

ilustração
Legenda: Ilustração feita por Meg Banhos para simbolizar o velório do pai, morto em decorrência da Covid

Diagnóstico 

Em menos de um ano, Aurimar Chaves de Oliveira se despediu da mãe, de uma das irmãs e do cunhado. A única diagnosticada com Covid-19 foi a mãe, Maria Francisca Chaves de Oliveira, de 77 anos. Sobre o que vitimou os outros, as dúvidas permanecem. Aurimar conta que a mãe morreu dia 14 de junho. Ela tinha doenças crônicas, mas não reclamava de dores. Em uma terça-feira, se queixou aos filhos que não respirava bem. Foi internada em um hospital particular, mas depois encaminhada ao Hospital São José. No domingo seguinte, faleceu.

“O do meu cunhado deram como problema pulmonar. Da minha irmã, problema cardíaco. A gente acha que foi Covid, sim, mas eles morreram ainda em abril. Tudo estava no começo. Eu fui o último a ver minha mãe. Fiz o reconhecimento do corpo e quatro pessoas participaram do enterro. Não conseguimos julgar onde ela se contaminou, ela nem saía de casa”, diz. Da vivência dolorosa fica o alerta: “todo mundo precisa se prevenir. Pensamos que pode estar longe de nós, mas ela está perto”. 

Muitas vezes, mesmo aqueles que resistem à Covid-19 levam consigo marcas ainda inexplicáveis da doença. O policial Rucley Cavalcante Braga, 48, esteve hospitalizado durante 53 dias. Passou por leitos na UPA, nos hospitais Leonardo da Vinci e Waldemar de Alcântara.

“Pressão alta. Era isso que eu tinha. Sabia que era do grupo de risco. No fim de março, eu senti falta de ar. Estava sem plano de saúde e fui para a UPA. Lá meu quadro se agravou. Paguei ambulância particular para ser transferido logo. Depois não lembro de muita coisa. Quando eu cheguei no Da Vinci fui para o tubo. Depois de 30 dias acordei. Os médicos se espantaram. Era como se não tivessem mais esperança”, contou. 

O passar dos dias mostrou ao paciente e aos médicos que ali ficaram sequelas físicas, além das emocionais. Agora, ele enfrenta problemas na visão e diabetes. “É uma lição de vida, de saúde e de relação com Deus. Procurar ser uma pessoa melhor e cuidar da saúde espiritual. Ter mais tempo com a família. Isso que é importante”, completa ele. 

O principal aprendizado deste momento, avalia a psicóloga clínica, Priscila Diniz, “para quem esteve aberto”, ressalta, “é entender que nem tudo irá sair do jeito que esperamos. É se libertar dessa necessidade de controle do outro e das circunstâncias. Isso faz com que a gente desenvolva nossa flexibilidade com as nossas próprias fraquezas, com a fraquezas do outro”. A psicóloga acrescenta que a partir desses processos, experimentados por algumas pessoas, a tendência é que as relações humanas melhorem. 

O infectologista Keny Colares, médico do Hospital São José, garante que lidar com o pós-Covid é um “franco aprendizado”. Segundo ele, “existe um campo nebuloso e, às vezes, fica difícil diferenciar o que é sequela do vírus e o que é sequela de um processo de um paciente que esteve grave”. 

A comunidade científica investiga as repercussões em quem foi infectado. “É uma doença que acomete o sistema nervoso. O tempo inteiro são publicados trabalhos colocando casos de outras alterações. Há pessoas que ficam com distúrbio de ansiedade, depressão ou estresse pós-traumático. Ainda teremos mais respostas. É preciso tempo de estudo e discussão”.

OPINIÃO

O tempo coletivo e a nossa travessia
Por Dahiana Araújo, editora

"Naquele 15 de março de 2020, quando os três primeiros casos de Covid-19 foram confirmados no Ceará, éramos quem já não somos. Seis meses se passaram. Pessoas e instituições se transformaram dentro de um tempo em que a espera tem sido um ambíguo consolo. Às vezes, sobra tempo para adaptações; outras vezes, não resta nada. Normal e novo se confundem? Neste 15 de setembro, atravessados, enquanto indivíduos e sociedade, permanecem os nossos aprendizados. Por isso, a ideia de falar sobre as lições - nossas, de outrem-, que rabiscam a história de agora e, também, a memória do porvir, nos obrigando a lembrar que desse árduo trajeto brota aprendizado. Não há como parar, ainda não acabou". 

 

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