Instrutores viram pais por meio de projeto social
Na orla de Fortaleza, homens assumem o papel de pai para tentar resgatar uma geração por meio do surfe
A história deles com o mar começa em um pedaço de tábua apanhado em alguma construção próxima para fazer o corpo ainda miúdo flutuar. Só depois de muito furarem ondas com madeirite, foram crescendo e aprendendo a construir as próprias pranchas. No meio do caminho, viram muitos amigos viciarem em drogas enquanto eles mesmos viciavam no mar. A dor da perda é a força para seguir adiante, hoje, com a responsabilidade que escolheram para si: tornar-se pais dos filhos dos outros para tentar mudar o destino das comunidades em que vivem.
"A gente tenta resgatar o jovem que tá no mundo perdido", diz César Silva, com a voz baixa e o corpo levemente curvado para o chão. Sem perceber sua grandeza, o homem enrola-se no próprio corpo como quem se sente pequeno diante do tamanho da tarefa que escolheu seguir. A ele, cabe a missão de dar aos que pouco tem a possibilidade de sonhar por meio do surfe.
César cresceu na beira da praia, na Barra do Ceará, atravessando o bairro com um pedaço de madeirite na cabeça para lixar as bordas e se aventurar no surfe de tábua. Fez aulas em escolinhas que começavam a se formar na praia e hoje, crescido, dedica a maior parte de seu tempo para dar às crianças do bairro a chance que teve.
Interesse
Quando as pessoas do bairro aprenderam a fabricar prancha, as tábuas começaram a ser substituídas. Agora, César divide o tempo entre as aulas que dá gratuitamente aos fins de semana e a fabricação de pranchas na Cooperativa de Produção para Serviços de Surf (Coopersuf). Quando percebe o interesse dos alunos, abre mão da remuneração para viabilizar o sonho de ter uma prancha. A motivação para ajudar é a transformação que o ato provoca nele e no outro.
Quando o relógio marca 8h de sábado, César já está com pouco mais de uma dezena de crianças enfileiradas para seguir até a praia. Enquanto os maiores se aventuram sozinhos, seguindo as orientações de César antes de entrar no mar, o professor apoia os menores emprestando seu próprio peso à prancha para que consigam ficar em pé mesmo que por apressados segundos.
Quem os observa vê na empolgação das crianças a possibilidade de mudar. Talvez muitos não compreendam que, ali, César ensina mais do que o surfe e a possibilidade de competir em campeonatos futuramente. Quando empresta seu conhecimento, ele oferece a própria generosidade. Se alongarmos a vista para o mar de uma forma um pouco mais demorada, é possível perceber entre as ondas: a transformação é uma via de mão dupla.
Enquanto os meninos vão ganhando ocupação e sorriso pelas pranchas emprestadas por César, ele mesmo vai sendo transformado. Visto como homem da comunidade, tornou-se pai dos filhos que não teve.
Alexsandro Nunes, que também trabalha na Coopesurf, na região do Vila do Mar, é fruto de uma das primeiras gerações a receberem aulas de surfe gratuitamente. Na generosidade dos mais velhos, que mantinham pequenas escolas funcionando na faixa de areia por mais vontade que financiamento, tornou-se competidor. Deixou os campeonatos para repassar ao bairro o que recebeu na infância. Há 14 anos, decidiu: sua missão é construir pontes para ajudar os adolescentes de seu bairro a mudar de caminho, oferecendo a troca do tráfico pelo esporte. A escolha de tentar transformar a realidade trouxe uma consequência que provavelmente é a mais difícil: acostumar-se a perder.
"A gente não tem que perder as pessoas tão cedo. Eu perdi muitos amigos na infância. Agora eu me apego à criançada e é muito difícil quando a gente chega e descobre que fulano morreu", ele diz. Alex lança o corpo inteiro para o surfe porque, no esporte, vê esperança. Das memórias da infância, guarda sob a testa o desenho de uma pequena tábua que o acompanhou nas quebras das ondas e lhe deu um futuro que agora se empenha em dividir com os mais novos.
Chances
Dentro de si, guarda a certeza de que o surfe nasceu nos becos da periferia. Esporte de pobre, não deixa as origens nem mesmo após o sequestro das elites. "O surfe mesmo é um esporte periférico. A elite está fazendo porque tem grana pra comprar prancha, mas o surfe é da periferia. Aqui, a gente usa isso para quem não tem chances", diz. E assim a arte de ensinar a pegar onda vai passando de geração em geração.
O sentimento de hoje é novo, gerado depois de muito quebrar a cabeça com a indignação de ver os meninos recusarem esperança para viver ostentação na vida com as drogas. "Agora eu penso: se a gente salvar um, já está valendo", Alex diz, enquanto segue adiante, se equilibrando no vazio de suas perdas.
Uma ausência longa, doída, fez Josias Mendes da Silva Neto, o Kiko, dedicar seu tempo ao trabalho na Coopesurf. Aconteceu com ele o que ninguém espera acontecer na sua família. "Perdi meu filho aos 17 anos por briga de gangue", ele diz.
A frase sai rápida, em um único fôlego, como se há muito tempo estivesse presa na garganta. A história, contada sem muitos detalhes, é a responsável pelo papel que ele assumiu: viciar os pequenos nas ondas, ocupando-lhes o tempo, para evitar que enveredem para o tráfico.
Atuação
Coopesurf e a produção de pranchas
A cooperativa é mantida pela fabricação venda de pranchas de surfe. No local, é feito do desenho à laminação e a finalização do instrumento. Camila Honorato atua no equipamento como operadora de máquinas
Aulas na comunidade
Kiko Silva ensina, além do surfe, a prática do skate na comunidade
Surfe de tábua
César Silva aprendeu a surfar com tábua e, hoje, fabrica pranchas
Ensino gratuito do esporte
Dezenas de crianças participam das aulas gratuitas na escolinha de surfe mantida pelos cooperados. O objetivo é estimular a prática do esporte e tirar os jovens da ociosidade, transformando, assim, a imagem do bairro
Beatriz Jucá
Repórter