Acolhimento de dependentes químicos aumenta 290,4% em um ano

Em 2017, 125 entradas foram registradas na única Unidade de Acolhimento existente na Capital. No ano seguinte, o atendimento foi ampliado com a inauguração de mais quatro equipamentos, totalizando 488 atendimentos

Escrito por Barbara Câmara , barbara.camara@diariodonordeste.com.br
Legenda: Os Caps AD são a 'porta de entrada' para as Unidades de Acolhimento no Município
Foto: Foto: JL Rosa

Foram necessários mais de 40 anos para que Marcos Torres se sentisse capaz de fazer uma afirmação libertadora: "gosto mais de mim mesmo do que da droga".

A troca de preferências sustenta a força de vontade que o mantém longe do álcool e de outras substâncias há um ano e oito meses. Na rede pública de saúde, mais pessoas tiveram acesso a oportunidades de tratamento no intervalo de um ano. Em 2017, 125 dependentes químicos foram encaminhados para a então única Unidade de Acolhimento (UA) da Capital. Até o fim do ano seguinte, quatro novos equipamentos do tipo foram inaugurados em Fortaleza, somando, ao longo de 2018, um total de 488 acolhimentos nas cinco unidades. O aumento percentual foi de 290,4%.

Os serviços das UAs são voltados para pessoas com necessidades decorrentes do uso de álcool e outras drogas, de ambos os sexos, que apresentem vulnerabilidade social e/ou familiar acentuada, e precisem de acompanhamento terapêutico e proteção temporária.

Lá, são oferecidos cuidados contínuos de saúde, além do acolhimento com um tempo de permanência de até seis meses. O funcionamento é mantido 24 horas por dia, durante toda a semana.

As Unidades de Acolhimento integram a Rede de Atenção Psicossocial (Raps) da Secretaria Municipal da Saúde (SMS). Para ter acesso às UAs, o paciente deve se dirigir a um dos Centros de Atenção Psicossocial voltados para dependentes de álcool e outras drogas (Caps AD). Há um equipamento situado em cada Secretaria Regional, onde são atendidos adultos a partir dos 18 anos, com necessidades decorrentes do uso de álcool e diversos tipos de drogas.

"O paciente precisa estar vinculado ao Caps AD, mas também pode buscar o posto de saúde da sua própria regional. A unidade básica encaminha para o Caps AD, onde é feita uma avaliação, que analisa o perfil do usuário", explica a gerente da Célula de Atenção à Saúde Mental da SMS, Harrismana Pinto.

O atendimento realizado é voluntário, uma vez que internações compulsórias não são feitas nas UAs. "Ao concluir os seis meses, o paciente receberá alta e continuará o tratamento no Caps AD do seu bairro, para que possa desenvolver a vida em comunidade", pontua a gerente.

Segundo ela, muitos usuários conseguem se restabelecer no próprio Caps AD, sem precisar de encaminhamento às Unidades.

Das 64 vagas disponíveis para Acolhimento, 10 são destinadas a pacientes infantojuvenis vinculados aos Caps infantil (Capsi), que atende pacientes de 4 anos a 17 anos e 11 meses, com transtornos mentais graves e persistentes, ou que façam uso de álcool e drogas.

Tentativas

"Eu comecei com uns 14 ou 15 anos de idade, mais ou menos. Maconha e bebida. Meu pai era engenheiro, tinha boa condição financeira, então a gente estudava em colégio bom. De quatro irmãos, só eu não me formei, porque 'tava' voltado pra isso, pra coisa errada". Aos 59 anos, Marcos Torres lembra de cada momento da sua longa trajetória lidando com vícios.

Foram muitas as tentativas de abandonar o consumo, assim como as recaídas. A perda da primeira esposa, que faleceu em um acidente, foi o "empurrão" final para que o ex-agricultor decidisse experimentar a cocaína pela primeira vez.

O segundo casamento aconteceu em 1998, e a consequente separação, em 2000, motivou o uso mais frequente da substância. "Foram 10 anos pesados, sem conseguir sair", revela. "Passei pelo Caps em 2005, 2006 e 2007. Lá é diferente. Eu ia três vezes por semana, recebia o remédio, e guardava. Não confiava, não queria, achava que ia ser mais uma droga. Na época era legal, mas deixava os 'caras' muito soltos. Hoje 'tá' melhor", revela.

Foi somente no Hospital de Saúde Mental Professor Frota Pinto (HSM) que Marcos conseguiu concluir o processo de desintoxicação, internado por 15 dias. Em seguida, foi encaminhado para o Hospital Dia - Elo de Vida, onde recebeu acompanhamento médico, psicológico e terapêutico, além do incentivo à busca por capacitação profissional.

"O principal desafio é manter o paciente o máximo de tempo possível sem uso de substância. É reestruturar a rotina da pessoa para evitar situações que aumentem o risco de recaída", esclarece Carlos Celso Serra Azul, psiquiatra da Unidade de Desintoxicação do HSM. Segundo ele, a recaída é comum, e faz parte do tratamento, uma vez que a dependência química é uma condição crônica.

Abstinência

O psiquiatra explica que, durante o processo de desintoxicação, diferentes manifestações podem ser observadas. A primeira delas é a tolerância.

"Para ter sempre o mesmo efeito, o usuário precisa de cada vez mais. Conforme for aprofundando no uso, vai precisar de quantidades cada vez maiores da droga. A partir disso, ele vai começar a desenvolver momentos em que o corpo vai pedir o uso da substância. É a abstinência. Cada substância tem uma", ressalta.

"A fissura faz parte desse espectro da abstinência. É como uma manifestação da substância sobre a pessoa, como 'sentir o gosto' da cocaína na boca. No caso do álcool, a pessoa treme, pode ter alucinações, convulsões. No Brasil, é o caso mais grave de manifestação, porque pode ocasionar depressão respiratória e morte".

No Hospital de Saúde Mental, são realizadas as três modalidades de internação: voluntária, quando o paciente vai por vontade própria; involuntária, quando um transtorno mental ou surto psicótico impede o paciente de discernir sobre a internação, fazendo com que a família intervenha; e compulsória, quando um mandado judicial é expedido por um juiz.

"Há uma procura voluntária. Por exemplo, um paciente que está no Caps, enfrentando abstinência, se mantém abstinente por um período e, por fatores externos, ele recai, e isso causa grandes problemas para família, para o trabalho. Esse paciente decide então, voluntariamente, buscar um tratamento num ambiente protegido, já que a comunidade está sendo um dos fatores de recaída", diz a psiquiatra e secretária executiva de Saúde Mental da Secretaria da Saúde do Estado, Lisiane Cysne.

'Coisas melhores'

De acordo com Carlos Celso, a internação voluntária é a mais frequente no HSM. No caso das involuntárias, o paciente deve ser conduzido pela família ou algum serviço de remoção, como o Samu. "A partir do momento que ele não consegue discernir sobre o tratamento, vai ter o tratamento indicado com a assinatura da família. Mas ele tem que estar em surto", explica.

Longe das substâncias há 20 meses, Marcos Torres afirma que não pretende voltar ao consumo. A reaproximação dos filhos é um dos fatores que o motiva diariamente. Para ele, a fissura é algo que "dá e passa". "Nessa hora, tenho que ter ferramenta para pensar em coisas melhores. Penso nos meus filhos, em uma vida melhor. Isso me fortalece".

Ele define o período de desintoxicação como "angustiante", mas insiste por ter a consciência de que é para o seu próprio bem. "São duas coisas perigosas que podem te fazer voltar para as drogas: a raiva e a euforia. Eu vivia atrás de droga, para ter uma curtição falsa. Quando passava, não tinha mais. Pelo contrário, era um baixo astral", diz.

O principal conselho que Marcos tem a oferecer para quem busca a reabilitação é desintoxicar-se. Em sua história, a vivência mais importante se deu no Hospital Dia. "Um ajuda ao outro lá dentro. Você aprende que ninguém é melhor que ninguém. A droga nivela todo mundo por baixo".

Os destaques das últimas 24h resumidos em até 8 minutos de leitura.
Assuntos Relacionados