Todos os mortos identificados em ações da Polícia em Fortaleza eram negros, aponta relatório

A informação divulgada pela Rede de Observatórios da Segurança vem a partir de buscas pela Lei de Acesso à Informação e é referente aos casos registrados em 2020

Escrito por Emanoela Campelo de Melo , emanoela.campelo@svm.com.br
morte intervencao policial
Legenda: O levantamento da Rede indica que no Estado os negros têm sete vezes mais chances de morrer dos que os não negros em intervenções de agentes da Segurança Pública.
Foto: Kid Júnior

Por que mataram Jardeson Rodrigues? Há um ano e 10 meses a família do jovem assassinado aos 21 anos de idade, a poucos metros de casa, permanece a fazer esta pergunta. Jardeson foi um dos 145 mortos em intervenções policiais no ano de 2020 no Ceará. Nesta terça-feira (14), a Rede de Observatórios da Segurança divulgou que, conforme levantamento dos pesquisadores, no ano passado 100% dos mortos em ações policiais na capital cearense que foram identificados eram negros. Para a Rede os números mostram que há uma seletividade racial explícita na hora de a Polícia abordar e disparar para matar.

O levantamento da Rede indica que no Estado os negros têm sete vezes mais chances de morrer dos que os não negros em intervenções de agentes da Segurança Pública. "Quando observamos a cor das vítimas, notamos uma discrepância entre o percentual da população negra na população em geral (62,3%) no Ceará e no percentual de pessoas negras vítimas de agentes estatais (87,2%). Isso porque o Estado é um dos que mais acumulam problemas com relação ao acompanhamento da cor das vítimas", conforme a pesquisa.

No ano passado, 57 pessoas foram mortas em Fortaleza em intervenções policiais. A Rede levantou que do total  de 106 vítimas no Estado são "incolores" dentro das estatísticas, ou seja, não há especificação sobre quem são elas, nem ao menos a cor que tinham. Das que foram identificadas e morreram em Fortaleza, todas eram negras. Jardeson é um exemplo. Teria a morte do jovem relação com o seu perfil físico?

No dia 13 de fevereiro de 2020, ele foi abordado por PMs no bairro Padre Andrade. Morreu encurralado, segundo a versão da família. "Sim, ele correu. Quem não ia correr com uma arma apontada para si? Chegaram de forma truculenta. Queriam que ele esperasse pela bala?" questiona Gilson Martins, pai da vítima.

Quase dois anos após a ação, a Controladoria Geral de Disciplina dos Órgãos de Segurança Pública e Sistema Penitenciário (CGD) afirma que o processo disciplinar permanece em trâmite na seara administrativa. Não há informações se os PMs estão afastados ou não das suas funções.

Enquanto isso, Gilson diz lembrar do filho todos os dias e reclama nunca ter sido procurado por ninguém do governo: "as informações que eu tenho é quando busco a corregedoria. Ainda tive outra grande perda com a morte do meu filho. Minha mãe ficou muito debilitada e veio a falecer no mês de junho de 2020 pois ela sentia muita falta dele, moravam juntos. A vida dela era ficar no portão admirando-o jogar bola".


"Fico com uma dor que não passa, é uma ferida que não cicatriza. Quase dois anos de muita saudade. Não tem um dia que eu não me lembre do meu filho e que não sinta a falta dele. Quero que a Justiça me dê uma resposta"
Gilson Martins
Pai de Jardeson


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Na época do fato, a PMCE informou que foi acionada para atender uma ocorrência acerca de pessoas armadas nas redondezas da Areninha da Lagoa do Urubu. Ao avistar a viatura, Jardeson, com antecedentes criminais por roubo e desacato, teria corrido com a mão na cintura e demonstrando atitude suspeita, segundo a Polícia.

O Sistema Verdes Mares teve acesso ao vídeo que mostra o instante exato do disparo contra a vítima. Nas imagens é possível perceber que o jovem foi atingido enquanto estava de costas. Após cair, Jardeson foi retirado do local pelos policiais militares. No vídeo não é mostrada nenhuma arma de fogo em posse dele.


A FORMA COMO A POLÍCIA AGE

Para o sociólogo e membro da Rede de Observatórios da Segurança, Ricardo Moura, a lacuna na identificação do ponto de vista racial dificulta propostas de políticas públicas e denúncias. Segundo Ricardo Moura, as mortes acontecem a partir de um caráter seletivo, e não de forma aleatória.

"A Polícia tem uma percepção sobre pessoas que seriam suspeitas, pessoas que seriam ameaças. Essa percepção é diretamente afetada pela questão racial, a questão do preconceito. A abordagem da Polícia é mais intensa. É importante a gente ressaltar que a Polícia pode sim usar da violência letal quando o policial se vê com a integridade física ameaçada, não colocamos isso em questão. O nosso ponto é que há um perfil muito seletivo, que há um grupo de pessoas que correm mais risco de serem mortas, não necessariamente pela sua ação, mas pela aparência. A gente não nota uma mudança na atuação da Polícia. Isso não é discutido no Governo do Estado, não é pautado. É como se fosse um assunto tabu", diz o especialista.



Ricardo destaca ainda que não necessariamente onde acontece a letalidade policial é a mesma área onde acontecem homicídios. O sociólogo elenca como hipótese a ação da Polícia ser mais ostensiva e letal em determinados bairros: "como se a presença das pessoas nesse perfil fosse menos tolerável nessas áreas".

 

"A sociedade só vai se insurgir com relação a isso quando alguém conhecido é afetado. A gente não ter um eco maior, não ter isso como uma pauta dentro da Segurança mostra o grau de aceitação da população para essa Polícia que mata. Isso se reflete na questão da impunidade, que são mortes que não geram tanta comoção. Nós tivemos mais de 100 casos no Ceará, mas dois ou três repercutem mais. E os outros? São pessoas que entram na categoria de vagabundo, envolvidos. Quando entram nessa esfera, a sentença de morte é uma questão de tempo. Os homicídios no Ceará são uma questão sociológica, mas que ficam fora da pauta da sociedade"
Ricardo Moura
Sociólogo e membro da Rede de Observatórios da Segurança

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RACISMO ESTRUTURAL


No fim de 2020, a Defensoria Pública do Ceará divulgou pesquisa apontando que o perfil de quem mais morre no Estado, independentemente de onde parte o ataque, é o jovem negro, de baixa escolaridade e morador da periferia.

Gina Moura, coordenadora da Rede Acolhe, considera que “estamos diante de números de violência letal alarmantes. Números que envolvem, inclusive, a ação do Estado, através da violência policial e do sistema prisional. Nós precisamos atender a esse público, porque é um público de necessidade muito específica e é muito invisibilizado. É um público que não é ouvido como deve ser. Não é tratado como deve ser. No sistema jurídico tradicional, as vítimas de violência não são pessoas que choram, sofrem e têm a vida tumultuada por um contexto de impacto emocional e econômico. Elas são tratadas como uma abstração. São apagadas e não têm a quem recorrer".

A defensora pública Lara Teles corrobora: “A violência letal é um dos indicadores mais perversos da segregação social no Brasil”. Ricardo Moura ainda considera ser inaceitável que um número tão expressivo morra sem que tenha a demarcação social.

"Seria muito importante que houvesse uma decisão do Governo do Estado para apurar todas essas mortes, apurar as circunstâncias se foram dentro de circunstâncias legais. Isso exigiria um levantamento de todos os casos, uma análise, se o inquérito chegou a uma conclusão, se as pessoas foram punidas. Qualquer Governo que se diga defensor dos direitos humanos, que se diga defensor da democracia precisa passar isso a limpo. Estamos alertando para uma situação que é muito grave. Se o policial se sente à vontade para eliminar uma vida e percebe que não vai ser punido por isso, o próprio Estado entra em curto-circuito. Isso é muito perigoso para um estado democrático", destaca o pesquisador da Rede.

APRIMORAMENTO DOS DADOS

A Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS) se posicionou por nota afimando que a "Superintendência de Pesquisa e Estratégia de Segurança Pública do Estado do Ceará (Supesp) realiza contínuos estudos para o aprimoramento dos dados obtidos por meio do Sistema de Informação Policial (SIP)".

De acordo com a Pasta, está em fase de conclusão um estudo que tem o objetivo de aperfeiçoar os critérios para a coleta de dados de raça. "Atualmente, o campo é preenchido com o auxílio de familiares das vítimas. Em razão da importância de se fazer uma coleta verossímil e disponibilizar dados confiáveis, a pasta reforça que trabalha de forma incessante para refinar seus indicadores criminais, uma vez que os dados são utilizados para orientar o trabalho das forças de segurança e são relevantes para formulação de políticas de segurança pública".

"Além disso, a pasta ressalta que os profissionais de segurança pública possuem disciplinas de formação na Academia Estadual de Segurança Pública (Aesp) que são amparadas na matriz curricular da Secretaria Nacional de Segurança Pública e Defesa Social (Senasp/MJ), que estabelece uma formação humanizada e de intervenções técnicas, propiciando a formação de profissionais preocupados com as questões sociais e a resolução de conflitos", disseram.

 

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