PF atira em assentamento do MST no Ceará e 'perde drone' em ação proibida pelo STF

Moradores afirmam que policial tentou acertá-los com o tiro. Enquanto a Polícia Federal alega que os agentes foram hostilizados

Escrito por Messias Borges e Emerson Rodrigues , seguranca@svm.com.br
O Acampamento Zé Maria do Tomé ocupa um terreno do Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (Dnocs), órgão federal, desde maio de 2014
Legenda: O Acampamento Zé Maria do Tomé ocupa um terreno do Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (Dnocs), órgão federal, desde maio de 2014
Foto: Divulgação/ MST

Uma ação da Polícia Federal (PF) para planejar a reintegração de posse de uma área federal, ocupada por integrantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), no Município de Limoeiro do Norte, na última sexta-feira (10), terminou com uma confusão e um tiro disparado por um policial federal. A Polícia Civil do Ceará (PCCE) investiga o caso.

Os moradores do assentamento afirmam que o policial federal tentou acertar uma pessoa com o disparo e, depois, ele e outro agente fugiram em um veículo em alta velocidade e provocaram um acidente com uma motocicleta. Enquanto a PF alega que os agentes foram hostilizados, que os moradores arremessaram pedras no carro e ainda tentaram agredir os policiais com um facão, quando o agente efetuou um tiro ao solo, sem atingir ninguém.

O Acampamento Zé Maria do Tomé ocupa um terreno do Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (Dnocs), órgão federal, desde maio de 2014. Hoje, são mais de 100 famílias, cerca de 500 pessoas que habitam o local. A produção agrícola do Acampamento abastece a Feira Cultural da Reforma Agrária, que acontece mensalmente no bairro São João do Tauape, em Fortaleza. Durante a pandemia, os moradores ainda destinaram alimentos a doações a hospitais e famílias carentes de Limoeiro do Norte e região.

Uma moradora do Acampamento, que preferiu não se identificar, contou à reportagem que era manhã de 10 de setembro, quando os moradores do assentamento viram um veículo Mitsubishi L200 Triton sem identificação transitando pelo terreno e um drone sobrevoando.

A gente foi procurar eles para conversar, para ver quem eles eram, por que estavam filmando. E eles receberam a gente com um tiro. No caso, o passageiro. Aí a gente foi para cima, tentou segurar o carro para chamar a Polícia, quando na fuga acabaram atropelando um rapaz que também é daqui. Ele pulou da moto e (os policiais federais) passaram por cima só da moto."
Moradora do assentamento
Preferiu não se identificar

Pelo menos um Boletim de Ocorrência (B.O.) foi registrado devido à ocorrência de "Disparo de arma de fogo", na Delegacia Regional de Russas, da Polícia Civil, no plantão do último sábado (11). Segundo o documento, o homem perguntou aos moradores "quer bala?" e atirou. Um estojo de munição calibre 9mm - referente ao tiro - foi apresentado na denúncia e apreendido.

Drone da Polícia Federal, que filmava área, caiu no acampamento e foi encontrado por moradores
Legenda: Drone da Polícia Federal, que filmava área, caiu no acampamento e foi encontrado por moradores
Foto: Reprodução

Os moradores do assentamento descobriram que se tratavam de policiais federais somente quando localizaram o drone, que caiu no terreno e que tinha a sigla da PF. Os dois homens não se identificaram como agentes da Polícia Federal e ainda estavam à paisana e utilizando um veículo descaracterizado, segundo a entrevistada.

Questionada sobre o uso do veículo descaracterizado na ação, a PF respondeu, através da assessoria de imprensa, que "o uso de viaturas descaracterizadas por polícias é comum e principalmente para diligências iniciais".

[Atualização: 15/09/2021, às 9h54] A Polícia Civil chegou a informar que a Delegacia Municipal de Limoeiro do Norte apurava as circunstância de uma possível invasão em um acampamento de trabalhadores rurais, na região da Chapada do Apodi, em Limoeiro do Norte. Mas, diante da confirmação que se tratavam de policiais federais, o caso será transferido para a Polícia Federal.

Os dois homens não se identificaram como agentes da Polícia Federal e ainda estavam à paisana e utilizando um veículo descaracterizado
Legenda: Os dois homens não se identificaram como agentes da Polícia Federal e ainda estavam à paisana e utilizando um veículo descaracterizado
Foto: Reprodução

PF diz que cumpria ordem judicial

Segundo nota emitida pela Polícia Federal nesta terça-feira (14), os policiais realizavam "levantamentos relacionados ao planejamento inicial para cumprimento de decisão judicial proferida pela Justiça Federal, já transitada em julgada, de reintegração de posse de área do DNOCS, invadida em 2014". A  PF informou que a decisão de reintegração de posse é de 2018. “Contudo, a solicitação da participação da Polícia Federal na execução da reintegração é de 10 de maio de 2021, tendo sido protocolada nesta superintendência no dia 29 de julho de 2021”. 

Embora as diligências ocorressem sem abordagem a pessoas ou ingresso em propriedade privada, policiais federais foram hostilizados por posseiros do Perímetro Irrigado Jaguaribe Apodi. Além de cercarem a viatura, tentaram forçar a saída dos policiais e chegaram a jogar pedras no veículo. A ponte de acesso ao local também foi bloqueada."
Polícia Federal
Em nota

A nota complementa que "após a tentativa de agressão aos policiais com um facão, houve disparo de arma de fogo em direção ao solo, sem atingir qualquer pessoa".

A PF informa que "instaurou inquérito para apurar a ocorrência da possível prática de crimes de dano ao patrimônio da União, além de resistência". Enquanto "outro inquérito está em curso para apurar a prática dos crimes de usurpação de área da União, dano ao patrimônio da União e furto de água e energia, praticados de forma reiterada pelos invasores da citada área".

MST e outras instituições se reúnem com PF

Ao descobrirem que os dois homens que entraram no Acampamento Zé Maria do Tomé eram policiais federais, representantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra do Ceará procuraram outras instituições e deputados estaduais para se reunir com a Polícia Federal, pedir esclarecimentos sobre a ação e devolver o drone da PF que foi encontrado.

A reunião foi realizada na sede da Secretaria do Desenvolvimento Agrário do Ceará (SDA), na presença do secretário De Assis Diniz. Questionada sobre a situação, a SDA, através da assessoria de comunicação, informou que não iria se manifestar neste momento e que apenas intermediou o encontro.

Representantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra do Ceará procuraram outras instituições e deputados estaduais para se reunir com a Polícia Federal
Legenda: Representantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra do Ceará procuraram outras instituições e deputados estaduais para se reunir com a Polícia Federal
Foto: Reprodução

Participaram também da reunião os deputados Elmano de Freitas (PT) e Renato Roseno (PSOL); o movimento Levante; o Escritório Frei Tito de Alencar de Assessoria Jurídica Popular; a Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa; e a Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil - Secção Ceará (OAB-CE).

O deputado estadual Renato Roseno afirmou, nas redes sociais, que as instituições reforçaram junto à PF que "desde junho, por força de uma decisão do STF, estão suspensas as ordens ou medidas de desocupação de áreas que já estavam habitadas antes de 20 de março do ano passado, quando foi aprovado o estado de calamidade pública em razão da epidemia de Covid-19". Já a Polícia Federal não comentou sobre a reunião.

A decisão a qual Roseno se refere foi tomada no dia 3 de junho deste ano pelo ministro Luís Roberto Barroso. Conforme o STF, estão suspensas por seis meses ordens ou medidas de desocupação de áreas que já estavam habitadas antes de 20 de março do ano passado, quando foi aprovado o estado de calamidade pública em razão da pandemia da Covid-19.

Barroso deferiu parcialmente medida cautelar em ação apresentada pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 828 (ADPF 828) para, segundo ele, “evitar que remoções e desocupações coletivas violem os direitos à moradia, à vida e à saúde das populações envolvidas”. 

Pela decisão, ficam impossibilitadas “medidas administrativas ou judiciais que resultem em despejos, desocupações, remoções forçadas ou reintegrações de posse de natureza coletiva em imóveis que sirvam de moradia ou que representem área produtiva pelo trabalho individual ou familiar de populações vulneráveis”. O prazo de seis meses começa a ser contado a partir da decisão (3/6) “sendo possível cogitar sua extensão caso a situação de crise sanitária perdure”, destacou o ministro.

A moradora do Acampamento Zé Maria do Tomé afirma que ela e as outras pessoas que ocupam o local estão com medo de um novo episódio de violência: "A gente nem dorme direito, passa a noite em vigília, porque a gente ficou com medo. A gente já tinha medo, mas hoje tá mais ainda. Já teve ameaças no passado, mas nessa proporção de tiro e atropelamento, não".

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