Entre as violações aos direitos humanos que preocupam as instituições públicas no Ceará e que são enfrentadas pelo Plano Pena Justa, estão a superlotação dos presídios e as denúncias de tortura. O Sistema Penitenciário cearense tem sete unidades penitenciárias interditadas para receber novos presos, e o Estado tenta reagir com a criação de novas unidades. Quanto às denúncias de tortura, a Secretaria da Administração Penitenciária e Ressocialização do Ceará (SAP) apoia as investigações e fala em estratégia do crime organizado.

Na reportagem da última segunda-feira (5), o Diário do Nordeste apresentou detalhes sobre o 'Pena Justa', programa nacional que visa melhorar as condições do Sistema Penitenciário. Na matéria de quarta (7), o DN irá explorar "as duas vigas mestras" do Plano no Ceará: como a educação e o trabalho são desenvolvidos e quais as próximas ações nos presídios cearenses.

O principal problema do Sistema Penitenciário cearense apontado por representantes de órgãos públicos, em entrevistas ao Diário do Nordeste, é a superlotação. Segundo dados da Secretaria da Administração Penitenciária e Ressocialização, a população carcerária cearense é de 23.192 internos, distribuídos em 30 unidades penitenciárias, para apenas 17.159 vagas. Um déficit de 6.033 vagas ou um excedente populacional de 35,1%.

23.192
internos compõem a população carcerária do Sistema Penitenciário cearense, conforme dados divulgados ao fim do último mês de abril. Entretanto, os presídios têm apenas 17.159 vagas.

Conforme as estatísticas, 11.137 presos cumprem penas em regime fechado; 3.338 internos estão em regime semiaberto; e 8.697 são presos provisórios (sem condenação). O Estado ainda monitora 10.279 pessoas que estão fora dos presídios, que cumprem a medida alternativa de prisão de uso da tornozeleira eletrônica.

O subdefensor público geral do Ceará, Leandro Bessa, afirma que "nós temos uma quantidade de presos muito superior às vagas, e isso acaba refletindo no cumprimento dos demais direitos".

"Fica mais difícil a assistência médica, o fornecimento da assistência material, que envolve vestuário, alimentação. Vai ser mais complicada a questão das visitas e, assim, os familiares vão acabar também sofrendo um pouco as consequências da pena", explica.

O secretário da Administração Penitenciária e Ressocialização do Ceará, Mauro Albuquerque, que ocupa o cargo desde o início de 2019, pondera que a superlotação é um "problema histórico". "Quando eu cheguei aqui, tinham 30 mil presos. Hoje nós temos 23 mil. Em um ano de atividade dentro do sistema prisional, de janeiro de 2019 a dezembro de 2019, nós tiramos 8 mil pessoas", enfatiza.

"O grande problema que eu encontrei aqui, quando eu cheguei, é que tinham 16.600 presos provisórios. Muitos tinham 5 anos que nunca tinham ido a uma audiência com um juiz. Isso causava esse desconforto dentro do sistema prisional", contextualiza o secretário.

Secretário Mauro Albuquerque visita presídio no Ceará
Legenda: Secretário Mauro Albuquerque pretende aumentar o número de presídios no Ceará nos próximos anos
Foto: Thiago Gadelha

A superlotação de alguns presídios levou à interdição de sete unidades penitenciárias, no Ceará, por decisão da Corregedoria de Presídios de Fortaleza, da Justiça Estadual. E, como consequências, os outros presídios também ficaram superlotados (pois passaram a receber ainda mais detentos).

O Tribunal de Justiça do Ceará (TJCE) confirmou que os sete presídios continuam interditados para receber novos presos. "No dia 15 de janeiro deste ano, a Justiça estadual determinou a interdição das unidades prisionais Professor José Sobreira de Amorim (UP-Sobreira Amorim), Professor José Jucá Neto (UP-Itaitinga 3), Elias Alves da Silva (UP-Itaitinga 4), Vasco Damasceno Weyne (UP-Itaitinga 5) e de Ensino, Capacitação e Trabalho de Itaitinga (UPECT-Itaitinga). Em 2023, as unidades de Triagem e Observação Criminológica (UP-TOC) e Professor Clodoaldo Pinto (UP-Itaitinga2) já haviam sido interditadas", detalha o Órgão, em nota.

137,5%
é o "máximo aceitável" de superlotação de um presídio considerado pelo Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP). Esse limite foi atingido pelas unidades penitenciárias interditadas, o que motivou as decisões de interdição do Poder Judiciário.

Mauro Albuquerque diz que "a interdição aconteceu e me imobilizou". "A interdição gera um problema muito grave, porque vai tensionar outras unidades. Se eu tenho dez presos, em vez de distribuir em cinco unidades, eu vou colocar os dez presos em uma unidade que já está lotada. Isso tudo gera essa situação e traz esses transtornos, mas a gente está conversando com o Judiciário, que está sendo bem sensível e está ajudando a administrar o Sistema", explica.

Uma estratégia do Estado, para diminuir a superlotação, é inaugurar novas unidades penitenciárias. O titular da SAP revela que o presídio de Horizonte, que já está em construção, com gasto previsto de R$ 26 milhões e foco industrial, deve ser inaugurado no início de 2026; e que a Unidade Prisional de Tianguá (UP Tianguá), inaugurada em fevereiro de 2023, deve ser ampliada.

Três outras novas unidades penitenciárias também são planejadas pelo Estado, para os próximos anos, segundo Mauro Albuquerque: um presídio voltado para o regime semiaberto, na Região Metropolitana de Fortaleza (RMF), e presídios em Quixadá (na Região do Sertão Central) e na Região do Cariri (que não teve o Município revelado). Os novos estabelecimentos devem ter cerca de 1.300 vagas, cada.

Denúncias de tortura nos últimos anos

O Sistema Penitenciário cearense convive com denúncias de casos de tortura, nos últimos anos. Em junho de 2023, a Corregedoria dos Presídios afastou seis policiais penais, que integravam a direção da Unidade Prisional Agente Elias Alves da Silva (UP-IV) - antiga CPPL IV -, após denúncias de tortura no presídio.

Órgãos de fiscalização do Sistema Penitenciário receberam denúncias de que internos da UP-IV sofriam agressões diárias e que muitos estavam com dedos quebrados. Um relatório da Defensoria Pública Geral do Ceará apontou mais denúncias, naquele ano: presos afirmaram que eram colocados de cabeça para baixo, que tinham os testículos apertados e que eram baleados com frequência pelos policiais penais.

Em setembro de 2022, a Corregedoria dos Presídios e o Ministério Público do Ceará (MPCE) realizaram uma inspeção na Unidade Prisional Professor Olavo Oliveira II (UPPOO II) - antiga IPPOO II - em Itaitinga, e se depararam com indícios de tortura em mais de 70 presos. Os relatos eram de enforcamento, sessões de inalação de gás, pisões na cabeça, entre outras práticas abusivas. Quatro policiais penais acabaram presos, incluindo o diretor da Unidade, no mês de outubro.

Em novembro de 2021, uma inspeção realizada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e pela Corregedoria Nacional, nas 27 unidades prisionais existentes no Ceará naquele momento, encontrou irregularidades como a superlotação carcerária e um tratamento "cruel e degradante" aos presos.

70
presos tinham indícios de ter sofrido tortura, na UPPOO II, segundo a Corregedoria dos Presídios e o MPCE, em setembro de 2022. Os relatos eram de enforcamento, sessões de inalação de gás, pisões na cabeça, entre outras práticas abusivas.

Em abril de 2019, o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT) concluiu um Relatório de Missão, após visitas a presídios cearenses, que indicou "indícios de práticas de tortura generalizada". O Órgão alertou ainda, no documento, para "a ausência de um protocolo de uso da força que normatize as condições e os critérios para utilização de equipamentos de segurança e para a aplicação dos 'procedimentos'" e a "completa falta de transparência", pois "as denúncias não podem ser apuradas em tempo hábil".

Já em fevereiro daquele ano, 32 internos ligados à facção criminosa paulista Primeiro Comando da Capital (PCC) denunciaram que foram torturados por policiais penais. Os exames de corpo de delito realizados nos detentos apontaram lesões nas mãos, costas e cabeças, que, conforme os presos, teriam sido causados por cassetetes.

Imagens de detentos que denunciaram ter sofrido tortura no Ceará
Legenda: Uma das práticas de tortura denunciadas pelos detentos, em 2023, é chamada de 'taturana', que consiste em ficar de cabeça para baixo, apoiado com a cabeça no chão
Foto: Reprodução/ Relatório da Defensoria Pública

Na versão dos policiais, os detentos os desobedeceram e os ameaçaram e ainda se amotinaram no presídio. Após a situação ser controlada, os presos precisaram ser separados e transferidos para outros presídios. O MPCE denunciou os 32 presos à Justiça pelos crimes de ameaça, desobediência e motim.

Sobre as denúncias mais antigas, o secretário Mauro Albuquerque questiona: "Três meses da minha gestão, e eu que sou torturador?". "A gente teve que retomar o Sistema à força, porque as facções não queriam entregar o sistema para o Estado", explica.

"Todos (os casos) tiveram o ciclo da legalidade fechada. Onde teve confronto, se alguém se machucou, teve o primeiro atendimento médico, foi para a delegacia e fez exame de corpo de delito, com transparência", garante Albuquerque.

O secretário afirma que "todas as ações que tiveram uma denúncia foram apuradas". "Cabe à CGD e ao Ministério Público agir. Isso a gente tem transparência. Agora, nós combatemos o crime organizado e, infelizmente, a Lei de Execução Penal não foi atualizada ainda. Eu trato um líder de organização criminosa como um preso comum", critica.

O crime usa três vertentes. Intimidação, foi o que fizeram com o Estado quando eu assumi aqui, com ataques por 45 dias. O Estado não cedeu. Outra, com corrupção, que é o que eu mais combato, a corrupção interna. Eles também tentam desacreditar e criminalizar suas ações (do Estado)."
Mauro Albuquerque
Secretário da Administração Penitenciária e Ressocialização do Ceará

Mauro Albuquerque destaca o uso de bodycam (câmeras corporais) pelos policiais penais no Ceará, desde o início de 2023, para registrar possíveis torturas - e também agressões aos policiais. São 440 câmeras ativas, espalhadas por todos os presídios cearenses.

Segundo o secretário, as denúncias por excessos na ação policial reduziram cerca de 80% após o uso da bodycam e as imagens não mostraram nenhum caso de tortura, em dois anos.

"Diminuíram os confrontos também. Ele (preso) está sendo pago pelo crime (organizado) para enfrentar o Estado, e vai criar a situação dele. Mas vai ser gravado, já gera prova contra ele e resguarda o policial. E também inibe qualquer excesso do policial, que vai agir dentro da legalidade. E legalidade nos permite usar a força", completa Mauro Albuquerque.

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Legenda: Sistema Penitenciário é filmado por centenas de câmeras, além das bodycam dos policiais
Foto: Thiago Gadelha

Cadê o Mecanismo Estadual?

Como resposta à série de denúncias de tortura no Sistema Penitenciário, o governador Elmano de Freitas assinou a Lei nº 18.660, publicada no dia 27 de dezembro de 2023, que insituiu o Sistema Estadual de Prevenção e Combate à Tortura (SEPCT) e criou o Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura (MEPCT).

Entretanto, após 1 ano e 4 meses, os trabalhos do Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura ainda não foram iniciados. A reportagem questionou à Secretaria dos Direitos Humanos do Ceará (Sedih), responsável pelo Mecanismo, qual a motivação e se havia uma previsão para o Órgão entrar em atividade, mas não recebeu uma resposta da Pasta até a publicação desta matéria.

O Centro de Defesa da Criança e do Adolescente do Ceará (Cedeca Ceará) - um dos órgãos convidados para integrar o Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura -, a Justiça Global e organizações da sociedade civil acionaram a Organização das Nações Unidas (ONU), através do Comitê Contra a Tortura e o Subcomitê para a Prevenção à Tortura, sobre a ausência de atuação do Mecanismo no Ceará, em fevereiro deste ano.

A coordenadora geral do Cedeca Ceará, Marina Araújo, conta que o resultado final da seleção para peritos do Mecanismo Estadual foi publicado no Diário Oficial do Estado (DOE), em junho de 2024. "No entanto, as peritas do Mecanismo Estadual não foram convocadas para assumir seus cargos. Desde 2024, o Cedeca Ceará e outros órgãos de direitos humanos solicitam, à Secretaria de Direitos Humanos e a outros órgãos do Poder Executivo Estadual, acesso às informações acerca da situação. Ao que nos parece, existe uma não prioridade da pauta por parte do Governo Estadual", lamenta.

Imagem de circuito interno de presídio no Ceará mostra detentos nus
Legenda: Inspeção realizada pelo CNJ e pela Corregedoria Nacional indicou tratamento "cruel e degradante" aos presos no Ceará
Foto: Reprodução

Araújo considera que "a tortura, infelizmente, é um legado cruel que ainda não resolvemos enquanto sociedade, e, no Brasil, é um tipo de violência que, embora possa remeter ao período da escravidão ou da ditadura militar, é cometida no cotidiano. Pessoas pobres, negras, em vulnerabilidade, são vítimas de tortura, e o Estado, por meio de suas forças de segurança e outros agentes, é um violador".

Sobre a importância do Mecanismo, a coordenadora do Cedeca afirma que "ter profissionais e um órgão independente que possa realizar visitas de inspeção e averiguação de denúncias, de forma segura, sobre maus tratos e violações de direitos humanos em locais de privação, é fundamental.

"(Os peritos) São pessoas treinadas, que seguem parâmetros internacionais e têm conhecimentos multidisciplinares atuando de forma independente, ou seja, sem ser uma pessoa a serviço do Estado, mas sim da sociedade", explica a coordenadora do Cedeca.

O perito do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, Rogério Guedes, corrobora que a atuação do Órgão é importante "pela prevenção e combate à tortura e a outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos, degradantes, realizando inspeções em espaços de privação de liberdade".

A tortura, infelizmente, é um legado cruel que ainda não resolvemos enquanto sociedade, e, no Brasil, é um tipo de violência que, embora possa remeter ao período da escravidão ou da ditadura militar, é cometida no cotidiano."
Marina Araújo
Coordenadora geral do Cedeca Ceará

"Porém, considerando a quantidade de peitos do MNPCT, 11 pessoas, sua atuação em todas as unidades federativas, de maneira eficaz, fica comprometida. Razão pela qual se faz necessária a implantação de Mecanismos Estaduais", ressalta.

Para Guedes, a inatividade do Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura no Ceará é "um flagrante descumprimento de um Tratado Internacional, e, consequentemente, de dever constitucional do Estado". Ele lamenta que, assim, as pessoas privadas de liberdade e seus familiares "deixam de ter um órgão de Estado que possui em sua missão o caráter preventivo diante de uma prática institucionalizada no País, que é a tortura".

Apreensão de celulares aumenta nos presídios

O Estado se vê diante de um novo desafio no Sistema Penitenciário: o aumento da entrada de aparelhos celulares nos presídios, nos últimos dois anos. Em 2019, no primeiro ano da gestão Mauro Albuquerque, os agentes penitenciários retiraram 6.234 celulares do cárcere. No ano seguinte, o número caiu 98%, e apenas 121 aparelhos foram retirados das celas, em 2020.

Imagem de celulares e drone apreendidos em presídio no Ceará
Legenda: Aumento da entrada de aparelhos celulares, 'rebolados' por drones, nos últimos anos, é uma preocupação do Sistema Penitenciário cearense
Foto: Divulgação/ SAP

O número de celulares apreendidos voltou a subir em 2023, com 584 equipamentos - 17 vezes a mais que em 2022. Em 2024, com 1.329 aparelhos apreendidos, o aumento foi de 127,5%, na comparação com o ano anterior. Em 2025, já foram encontrados 286 celulares no Sistema Penitenciário cearense, além de 292 relógios smartwatch.

Celulares apreendidos nos últimos anos:

O secretário Mauro Albuquerque afirma que "um celular vale muito, é uma arma muito poderosa dentro do Sistema (Penitenciário). O crime (organizado) viu que estava perdendo espaço na rua e começou a investir em tecnologia. 80% não chegam nas celas. Se entrar na cela, não ficam 7 dias, que todo dia eu tenho uma (inspeção) geral".

As facções tentam enviar os aparelhos celulares para os presos por meio das visitas (que levam os equipamentos de formas variadas, inclusive dentro do corpo) e por drones. Entre 2024 e 2025, a SAP já derrubou 20 drones sobrevoando as unidades penitenciárias. O último episódio ocorreu no dia 24 de abril deste ano e resultou na prisão em flagrante de um homem suspeito de controlar o drone.