Entenda o que a decisão do STF modifica no cumprimento de pena de réus condenados por homicídio
O Diário do Nordeste entrevistou um promotor de justiça, um defensor público e dois advogados que atuam no Ceará, para analisarem a decisão
O julgamento realizado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no Recurso Extraordinário (RE) 1.235.340 modificou o cumprimento de pena de réus condenados no júri popular, por crimes contra a vida (como homicídio, tentativa de homicídio e feminicídio), em todo o Brasil. O Diário do Nordeste entrevistou um promotor de justiça, um defensor público e dois advogados que atuam no Ceará, para analisarem a decisão.
"O Plenário decidiu que a soberania das decisões do Tribunal do Júri (ou júri popular), prevista na Constituição Federal, autoriza o cumprimento imediato da pena imposta pelos jurados ao condenado. Assim, condenados por júri popular podem ser presos imediatamente após a decisão do júri", sintetizou o STF.
A maioria dos ministros (André Mendonça, Nunes Marques, Alexandre de Moraes, Cármen Lúcia e Dias Toffoli) acompanhou o voto do relator, o ministro Luís Roberto Barroso, em julgamento realizado na última quinta-feira (12). "Para o colegiado, a prisão de réu condenado por decisão do tribunal popular não viola o princípio constitucional da presunção de inocência, pois a culpa do réu já foi reconhecida pelos jurados e não pode ser revista por juízes em eventual recurso", acrescentou o STF.
Com isso, o magistrado que atua nas varas do júri pode decretar o início do cumprimento da pena de prisão independente da pena aplicada ao réu. O STF declarou inconstitucional o trecho do artigo 492 do Código de Processo Penal (CPP), introduzido pelo Pacote Anticrime, que previa a execução imediata da pena imposta pelo Tribunal do Júri apenas se a condenação fosse de, no mínimo, 15 anos de reclusão.
O RE 1.235.340 foi impetrado pelo Ministério Público do Estado de Santa Catarina, contra uma decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) de que um réu condenado a 26 anos e 8 meses de prisão, por matar a ex-companheira a facadas, poderia recorrer em liberdade, mesmo o juiz de Primeira Instância tendo decretado a prisão.
A matéria do STF tem repercussão geral (Tema 1068), o que significa que a tese deve ser aplicada a todos os casos semelhantes, nas demais instâncias do Judiciário, em todo o Brasil.
Os ministros Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski e Rosa Weber (estes dois últimos aposentados) se posicionaram contrários ao voto do relator. Para os ministros, a soberania das decisões do júri popular não devia ser absoluta e, em observância ao princípio da presunção da inocência, a pena só poderia começar a ser cumprida após a sentença condenatória definitiva - quando não couber mais recursos. Já os ministros Edson Fachin e Luiz Fux defenderam a prisão imediata apenas em casos de penas maiores de 15 anos ou em casos de feminicídio.
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O que dizem os entrevistados
O promotor de justiça Marcus Renan Palácio, membro do Ministério Público do Ceará (MPCE) atuante na 1ª Vara do Júri da Comarca de Fortaleza, se posiciona a favor da decisão do Supremo Tribunal Federal e afirma que "há, hoje, acertadamente aliás, uma tendência dos Tribunais no sentido de acolhimento aos direitos das vítimas que merecem, igualmente, proteção do legislador".
Essa decisão do STF, a meu sentir, traduz-se, também, numa sonora e rotunda resposta a esses reclamos sociais, nomeadamente porque os efeitos deletérios daqueles que foram vítimas de crimes de homicídio consumado ou tentado, bem como a seus respectivos familiares, são imensuráveis."
Marcus Renan cita um dado destacado pelo ministro Luís Roberto Barroso em seu voto, que mostra a manutenção das decisões do júri popular em recursos: "No período entre janeiro de 2017 a outubro de 2019, o Tribunal de Justiça de São Paulo julgou 15.411 recursos contra decisões proferidas pelo Tribunal do Júri. O Tribunal anulou 305 sentenças, a pedido da defesa, ou seja, em somente 1,97% (dos processos) houve intervenção do Tribunal para devolver a matéria para análise do júri. Esse percentual de êxito, em se tratando de recurso apresentado pela acusação, é menor ainda, chegando a um percentual de somente 1,46%, correspondendo, portanto, a 225 decisões daquele universo de mais de 15.000 (processos) julgados".
Já o defensor público Paulo César do Carmo, membro da Defensoria Pública do Ceará atuante na 5ª Vara do Júri da Comarca de Fortaleza, explica que "a soberania dos veredictos não pode ser confundida com autorização para prisão automática. A soberania dos veredictos fala justamente da competência e legitimidade do Conselho de Sentença a decidir no Tribunal do Júri, nos crimes dolosos contra a vida. Então, o juiz-presidente do Tribunal do Júri dá a pena de acordo com aquilo que decidiu o Conselho de Sentença".
A soberania dos veredictos não é ilimitada, não é absoluta. Tanto é que é cabível a reforma da decisão dos jurados, em segundo grau. Em um recurso de apelação cujo fundamento é a decisão dos jurados contralendo as provas dos autos, o Tribunal anula a decisão dos jurados e submete o réu a outro julgamento. Portanto, essa decisão dos jurados não é plena e absoluta, é relativa de acordo com as provas do processo."
Com base no princípio da soberania dos veredictos, o defensor público Paulo César do Carmo acredita que a decisão do STF foi "equivocada". "A Constituição prevê que a ordem judicial escrita tem que ser fundamentada, ou seja, quem determina a prisão é o juiz togado. Essa prisão tem que ser devidamente fundamentada, sendo que os jurados não fundamentam as suas decisões, que são baseadas na íntima convicção", conclui.
Para o defensor público, a decisão do Supremo também "praticamente anula o princípio constitucional da presunção de inocência". "Enquanto há recursos e processo em trâmite no segundo grau, mesmo após uma condenação pelo Tribunal do Júri, o princípio da presunção de inocência é latente. A Constituição diz que, somente após o trânsito em julgado, ou seja, quando não houver mais nenhum recurso, que o réu é considerado culpado. Nessa decisão do Supremo, você está tratando o réu como culpado, apenas com base numa única decisão do Conselho de Sentença", pontua.
A opinião do advogado criminalista e professor de Direito, Leandro Vasques, vai ao encontro da análise do defensor público Paulo César do Carmo. "Apesar da soberania dos veredictos do Tribunal do Júri, o Conselho de Jurados, como toda instituição composta por pessoas, é falível. Tanto que, após a condenação em plenário, é cabível apelação do réu para a Segunda Instância, que pode anular o julgamento e remeter o acusado a um outro julgamento. Perdi as contas dos casos em que atuei, e o réu só foi absolvido num segundo julgamento perante o Júri Popular", afirma Vasques.
O entendimento recente do STF impondo a prisão imediata e instantânea em plenário no caso de condenação pode (e irá) gerar agudos erros judiciários. A perniciosa relativização que a maioria dos membros do STF está promovendo em relação ao princípio da presunção de inocência nesse tema constitui grave atentado à Constituição Federal, já tão vilipendiada por aqueles que deveriam ser seus mais fiéis guardiões, fato gerador de uma nefasta insegurança jurídica em nosso ordenamento."
Vasques destaca o voto do ministro Gilmar Mendes, "que considerou que a Constituição Federal, tendo em vista a presunção de inocência, e a Convenção Americana de Direitos Humanos, em razão do direito de recurso do condenado, vedam a execução imediata das condenações pelo Tribunal do Júri". "Seria cabível a prisão logo após a condenação em primeiro grau, antes mesmo de qualquer recurso, somente quando presentes os requisitos para a prisão preventiva, nos termos do artigo 312 do Código de Processo Penal: garantia da ordem pública, conveniência da instrução criminal e para assegurar a aplicação da lei penal", pondera.
O advogado criminalista e professor de Direito, Nestor Santiago, também criticou a decisão do STF: "penso que houve um equívoco irreparável à Constituição Federal e ao Código de Processo Penal, contrariando, inclusive, entendimento anterior do próprio STF sobre o assunto".
Primeiro, o STF invalidou o próprio texto legal que determinava que a prisão decorrente de condenação pelo Júri somente ocorreria nos casos de penas superiores a 15 anos e se houvesse necessidade, conforme as condições do caso. Em segundo lugar, o STF passa a criar uma hipótese legal de prisão preventiva obrigatória, o que a própria legislação processual penal proíbe. Em terceiro lugar, mas não menos importante, o STF faz uma confusão enorme entre a soberania dos veredictos (decisão proferida pelos jurados é soberana) e a presunção do estado de inocência (o acusado somente pode ser considerado culpado depois de uma decisão da qual não caiba nenhum recurso)."
Para Santiago, do ponto de vista da advocacia, houve "um enfraquecimento da instituição do júri". "Haverá um temor natural de que os acusados que estejam soltos sejam presos imediatamente em razão de uma condenação. Com relação aos que já estão presos e passarão pelo julgamento, um temor pelo enviesamento do julgamento pelos jurados pois, já que ele está preso, por que absolver?", questiona.