Tocadores mantêm viva arte da rabeca

Escrito por Redação ,
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Instrumento de origem popular, a rabeca ainda é tocada por muitos músicos em Municípios do interior nordestino

Baixio. A arte musical popular ainda resiste à força e aos modismos da indústria cultural. O Ceará conta com cerca de 100 tocadores de rabeca espalhados em 45 Municípios, no sertão e nas serras. A maioria acima de 60 anos de idade. Um exemplo vem desta cidade, localizada na região sudeste do Estado, divisa com a Paraíba, onde o barbeiro e músico, Francisco Cassiano Nazário, o Chico Barbeiro, mantém viva a tradição nordestina. Mas será que as novas gerações estão dispostas a continuar o ofício dos músicos já velhos e que quase não tocam mais para o público em suas cidades no Interior?

"Acredito que sim, a rabeca será preservada e terá continuidade com músicos jovens", prevê o professor e pesquisador, Gilmar de Carvalho, que no período de 2004 a 2006 realizou ampla pesquisa e visitou mais de uma centena de rabequeiros no Interior do Ceará. Já Chico Barbeiro prevê uma diminuição do ofício musical. "A sanfona ocupa mais espaço e eu penso que vai diminuir muito quando os rabequeiros atuais forem embora, mas acabar mesmo, não acaba não".

Conhecido na pequena cidade de Baixio, Chico Barbeiro, aos 67 anos, permanece tocando, animando festas juninas, festas sociais da terceira idade e eventos culturais no Município. O repertório é quase exclusivo do forró pé-de-serra de Luiz Gonzaga. Inclui-se o xote, baião e o arrasta-pé. "Aprendi a tocar de ouvido, nunca estudei e ninguém me ensinou nada", disse. "É o dom que Deus me deu e quando eu toco me sinto bem e feliz, porque gosto de música e me renovo mais cinco anos".

A rabeca somente passou a fazer parte da vida artística de Chico Barbeiro em meados da década de 1970, quando comprou uma usada de Manoel Vieira, de Umari, que ele conhecia desde menino.

"Por aqui só tinha ele que tocava rabeca. Era um mestre". O instrumento estava quebrado e Chico Barbeiro fez o conserto. Logo aprendeu a manipular o arco e definir a posição dos dedos nas cordas. Tornou-se um mestre rabequeiro.

Criação

Em 2007, teve uma inspiração por meio de um sonho de fazer uma rabeca usando cano PVC. "Fiquei martelando a ideia e deu certo. Fiz a primeira e percebi que poderia melhorar e fiz outra bem acabada e bonita". A rabeca de PVC é demonstração da genialidade do mestre rabequeiro, cujo talento musical tem continuidade com o filho, Jussiê Avelino Cassiano, que acompanha o pai, tocando zabumba e sanfona. "Já tive tocando em João Pessoa, no Centro Cultural, para milhares de pessoas, na TV Diário, e no encontro de Rabecas em Fortaleza", ressalta.

A aptidão musical veio da avó paterna, Ana Pereira, e do tio-avô, o ´Velho Pereira´, que tocavam sanfona, na Serra do Araripe. "Meu tio é da época de Januário, pai de Luiz Gonzaga, e disputava com ele, os forrós", contou o rabequeiro, que durante a adolescência trabalhou duro, na roça, com o pai, no vizinho Município de Umari, no Sítio Santelmo. "Tinha vontade de sair da roça e aprendi sozinho a cortar cabelo", disse. O ofício de barbeiro só era exercido aos sábados e domingos.

Chico Barbeiro é um artista de outras habilidades. Ajudava o pai nos serviços de carpintaria, consertando e fazendo cancelas, mesa, cadeira, portas e janelas. Um pouco mais tarde, aprendeu a fotografar e revelar negativo preto e branco. "Tinha uma máquina lambe-lambe e fazia fotos para documentos, mas a prioridade era a barbearia que me deu dinheiro para comprar a minha casa".

Movimento

Casado, em 1966, com Maria Félix, mudou-se para Baixio em busca de melhores condições de vida. "O movimento aqui era melhor por causa do trem que liga o Ceará à Paraíba e trazia muita gente", explicou. "Comprei uma cadeira de barbeiro usada e aluguei um ponto", recorda. Aprendeu ainda a arte de relojoeiro e nas horas vagas consertava relógios dos moradores. "Naquele tempo havia safra de algodão e os agricultores compravam aqueles relógios pesados, de aço".

O primeiro instrumento musical na vida de Chico Barbeiro foi um cavaquinho, que lhe chegou às mãos aos 8 anos de idade, em 1952. No início da década de 1960, adquiriu um fole de oito baixos, usado, e começou a animar forrós nos sítios. "Naquele tempo a gente tocava arrasta-pé, mazurca, polca", relembrou. Só um pouco mais tarde, a rabeca iria aparecer na vida do músico de talento nato para não mais abandoná-la.

Aposentado, continua como barbeiro e tocador de rabeca. O ofício de fotógrafo há tempo abandonou. Em casa, mantém com zelo, caixas de som, violino, bandolim, duas rabecas, zabumba e um triângulo. Os forrós são animados com o trio regional (sanfona, zabumba e triângulo) e mais Chico Barbeiro na rabeca. "Quero terminar minha vida tocando rabeca, animando festas, porque a música me faz feliz. É isso que me faz bem e me dá vontade de viver".

MAIS INFORMAÇÕES
Chico Barbeiro
Fone: (88) 9664. 4482

Honório Barbosa
Repórter

ORA DIREIS, OUVIR RABECAS
Instrumento faz parte da história

Fortaleza A rabeca está em alta. Nunca se falou tanto de rabeca como agora. Aliás, ninguém sabia que existiam tantos rabequeiros por aqui. Só se falava do Cego Oliveira, que já vinha dos filmes da Caravana Farkas (início dos anos 1970), e chegava ao documentário de Rosemberg Cariry.

Bateu uma curiosidade grande em relação à rabeca no Ceará. Por que só se falava em Pernambuco? O único rabequeiro do Ceará seria o Zé Oliveira, filho do Cego, que chegou aos estúdios (disco gravado, ainda não prensado) graças ao Calé Alencar?

Francisco Sousa e eu empreendemos uma viagem pelo Ceará profundo. Fomos em busca de rabequeiros, desde 2004. Foram mais de dez mil quilômetros, por estradas asfaltadas, vicinais, de carro, sem esquecer as aventuras na garupa dos mototáxis, nas carrocerias das D-20, nas "topics", e nos ônibus. Valia a pena correr todos os riscos para localizar, entrevistar e fotografar um rabequeiro. Melhor ainda se também fosse um luthier. Vieram as imagens em movimento e as gravações, que chegaram ao CD, válidas como "documentos sonoros".

O que é mesmo uma rabeca? Primo pobre do violino ou um "stradivarius" caboclo? A rabeca veio de lugares distantes, de tempos imemoriais, e chegou ao sertão para animar as festas e subverter o cotidiano de trabalho. Os carpinteiros, que antes faziam aviamentos de casas de farinha, móveis ou esculpiam santos, fabricaram os instrumentos com o que tinham à mão: talos de carnaúbas, latas de pólvora, canos de "pvc" (onde entra a figura iluminada do Chico Barbeiro ou do Canolino, do Baixio), e panelas. As madeiras iam da paraíba ao pau d´arco, do pinho à umburana. Eles queriam preencher de sons o oco do mundo.

Prevalece o desejo do homem de elevar o espírito, de dançar ou de fazer um dueto com os pássaros, com a água que flui ou com o vento que sopra. Assim, os rabequeiros formaram um repertório que vai da tradição ao que ouviram no rádio e mantém, a animação das valsas, marchas, xotes, mazurkas, maracatus e baiões.

Nos terreiros das fazendas, o chão de barro é molhado, na hora do forró. A dança de São Gonçalo é promessa ao santo português, que se tornou violeiro no Brasil. Os reisados se espalham pelo País inteiro, com bois, emas, burrinhas, jaraguás e caretas.

As rabecas acompanhavam os dramas, montados em cima das mesas, com figurino de crepom e canções que caíram no esquecimento ou animavam a empanada dos bonecos, onde se destacava a valentia do Casimiro Coco. Onde estivesse um rabequeiro, ali se instalava a alegria e /ou a devoção.

Som roufenho

Por todo o Ceará se pode ouvir o som roufenho de muitas rabecas, de difícil afinação e aprendizagem de oitiva. Daí eles falarem no "dom", que vem de Deus, e ganha entre os homens as quatro cordas retesadas e toda a capacidade de improviso do mundo.

Lançamos (eu e Francisco Sousa) o livro "Ceará das Rabecas", em 2006. Tivemos um apoio generoso e espontâneo da Expressão Gráfica. No total, levantamos mais de 100 rabequeiros e "luthiers" em atividade.

Tudo feito pelo prazer da descoberta, pelo desejo de interferir na cena cultural, à margem das políticas públicas, na maioria das vezes desencontradas e confusas.

Alguma coisa mudou: passamos a saber que temos excelentes rabequeiros e luthiers, na contramão dos modismos, desafiando a indiferença, superando o rótulo de obsolescência, e apontando para as novas gerações um som que passou pelo Mestre Ambrósio, no Estado de Pernambuco, e chegou aqui com Dona Zefinha, com a Orquestra Armorial do Sesc de Juazeiro do Norte.

Gilmar de Carvalho
Especial para o Regional