Sem acesso à água, famílias do Interior do Ceará escolhem entre matar a sede e se proteger da Covid

A rotina de comunidades que dependem de chafarizes, dessalinizadores, carros-pipas e cisternas diante da pandemia causada pelo novo coronavírus

Escrito por Honório Barbosa / André Costa , regiao@svm.com.br
Legenda: Com água restrita, moradores do interior cearenses têm dificuldades de manter a higienização frequente das mãos, conforme recomendado pela OMS neste período de pandemia
Foto: Honório Barbosa

Diarreia, febre, cólera, verminoses, tantas outras doenças e, agora, a Covid-19. Para milhares de cearenses o novo coronavírus veio para inflar a dura realidade daqueles que não têm acesso à água potável. Sem este bem elementar, fica inviável manter a higienização frequente das mãos conforme orienta a Organização Mundial da Saúde (OMS) como forma de reduzir a transmissão do vírus. 

Diante da escassez do líquido, famílias se veem encurraladas na decisão de usar a pouca água para beber ou para higienização. A escolha natural, claro, é saciar a sede e os cuidados recomendados pelos especalistas acabam por ficarem em segundo plano. É assim para mais de 70 famílias em duas localidades da zona rural de Iguatu.  

“Para fazer a higienização é preciso mais água, só que não temos nem para beber e tomar banho”, externa Maria José Cardoso, presidente da Associação dos Moradores do Assentamento Mirassu, em Iguatu, região Centro-Sul do Estado. Na localidade vivem 26 famílias, todas enfrentam a mesma dificuldade de acesso à água.  

Com os olhos boiando em águas salgadas – a única que não costuma faltar –, Maria acrescenta: "A gente fica sem saber o que fazer. Desprotegida quando volta da rua, não temos como lavar as mãos nem as compras. Só nos resta a proteção de Deus".  

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A cerca de 30 km do Assentamento, outras 48 famílias residentes na Agrovila Ingá, também em Iguatu, padecem do mesmo dilema. “Nessa pandemia a gente tem de se virar com o que tem, se chover ou rapaz da pipa [referindo-se ao Caminhão-Pipa] trouxer [água], a gente tem, se não, é o que Deus quiser”, lamenta a agricultora Edilene Braga. 

Aos moradores da Agrovila, fundada há mais de dez anos, a ironia é que eles convivem com a falta de água mesmo estando a poucos metros do Açude Trussu, reservatório responsável pelo abastecimento das cidades de Iguatu e Acopiara. 

“Estamos apenas 800 metros do sistema de captação de água do Saae (Serviço Autônomo de Água e Esgoto) de Iguatu e não temos água porque não há um sistema de bombeamento”, criticou o aposentado José Sales. “Não temos água bruta e nem tratada”. 

Legenda: Moradores relatam ter que escolher entre lavar as mãos e beber água
Foto: Honório Barbosa

Pandemia acaba ficando em segundo plano  

Sem água, Edilene conta que, mesmo diante do cenário pandêmico, os cuidados na higienização não foram intensificados. “Como ter os cuidados de lavar as mãos, tomar vários banhos, lavar roupas e as compras sem água?”, questiona.  

A nossa vida aqui é muito difícil e ficou mais complicada na pandemia. Amanhã a água da minha cisterna se acaba e vou ter de ir atrás de água com um vizinho.
Marlete da Silva
Dona de casa

O médico sanitarista e coordenador da unidade da Fundação Oswaldo Cruz, no Ceará, Carlile Lavor, considera grave a situação das famílias vulneráveis socialmente e reconhece que, diante tantos problemas, a pandemia da Covid-19, embora grave e que mereça amplo cuidado, acaba ficando em segundo plano. 

“O vírus não se enxerga, mas essas famílias sentem a falta de água diariamente. Portanto não conseguem colocar a preocupação com a Covid em primeiro lugar", avaliou Carlile, que é o idealizador dos 'Agentes Comunitários de Saúde', uma experiência que começou no Ceará, no fim da década de 1980, e se estendeu pelo Brasil.

O também sanitarista, Odorico Andrade, professor da Universidade Federal do Ceará (UFC) e pesquisador da Fiocruz, compartilha do mesmo pensamento e adverte que “não dá simplesmente para esperar desses moradores a adoção de medidas de prevenção, porque na verdade, eles não têm como colocar em prática além de estarem com outras preocupações urgentes em suas vidas, como buscar água para beber".

Mais de meio milhão de cearenses sem água

Edilene, Maria José, Marlete e José Sales não são casos isolados. Eles fazem parte de uma grande parcela da população brasileira que não tem acesso à água. Conforme dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 10% dos domicílios brasileiros não contavam, em 2019, com abastecimento de água diariamente. 

No Ceará, o relatório do Sistema de Informação de Vigilância da Qualidade da Água para Consumo Humano (Sisagua), mostrou que 620 mil cearenses - 6,75% do total - não recebem água tratada. Eles utilizam soluções coletivas, como chafarizes, dessalinizadores, carros-pipas e caixas de distribuição pública

Para estas pessoas, o risco de adoecer rompe as fronteiras da atual pandemia. A vulnerabilidade  a outras doenças os acompanha desde sempre. A médica Luana Barbosa explica que, a falta de água potável, além de ser um grave problema social, representa muitos riscos à saúde.  

A profissional detalha que a maioria das doenças a que este contingente de pessoas estão expostos tem ciclo de transmissão “feco-oral”, isto é, quando os agentes causadores presentes nas fezes humanas ou de animais entram pela boca de uma pessoa e ela acaba adoecendo.  

Esse risco fica mais evidente quando não há água tratada para beber ou para lavar alimentos. Sem água, os cuidados de higiene quase inexistem e esse problema compromete a saúde.
Luana Barbosa
Médica

Legenda: Sem água encanada, moradores armazenam o líquido em baldes e caixas d'água. A vedação inadequada pode favorecer proliferação de mosquitos
Foto: Honório Barbosa

Risco das principais doenças pela falta de água potável:

  • Diarreia (a principal e mais comum);
  • Hepatite A;
  • Cólera;
  • Leptospirose;
  • Verminoses;

Os sintomas mais comuns apresentado por aqueles que ingerem água de má qualidade, são vômitos e diarreias, podendo levar a dores abdominais, dor de cabeça e febre.

Impactos à saúde

O médico sanitarista Carlile Lavor defende com urgência a implantação de sistemas localizados de abastecimento de água tratada para que essa realidade seja revertida. “A água suja traz bactérias e outros micróbios e provocam diarreia, hepatite e verminose”, alerta.

O leque de doenças é extensa e, com isso, as chances de sobrecarregar ainda mais o sistema de saúde é grande, adverte a Dra. Luana. "Dependendo da evolução do paciente, ele terá que ser internado. E, em um momento tão delicado como este, com unidades de saúde cada vez mais demandados, qualquer paciente a mais é um fator agravante", pontua.

Quando falta água até para beber e cozinhar alimentos, é prova de que essas famílias estão desprotegidas e expostas a mais riscos de doenças, dentre elas a Covid-19 que é de transmissão viral.
Odorico Andrade
Médico e pesquisador

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