Motorista ganha fama com misto de caminhão

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Tradicional e histórico caminhão completa 46 anos de constantes viagens entre Ceará e Rio Grande do Norte

Limoeiro do Norte. Quando só havia pedras e buracos no meio do caminho, e no caminho nem mesmo uma estrada havia direito, já se via “Raimundinho do ‘Mixto’”, entre Limoeiro do Norte (CE) e Mossoró (RN), dirigindo seu possante relicário, um misto de ônibus com pau-de-arara - na frente, a boléia dupla para passageiros, seguida da carroceria para as cargas. Uma das primeiras conduções coletivas do Vale do Jaguaribe, há 46 anos (desde 1962) faz história na fronteira interestadual. Homem que já mexeu com tudo que é ofício, começou a trabalhar antes mesmo de se entender por gente, e quer continuar trabalhando “até quando Deus permitir”.

Não dá ao menos três horas da madrugada e Raimundo de Freitas Nunes está de pé, ou melhor, sentado. “Pra ir a Tabuleiro pegar passageiro e encomenda, voltar pra Limoeiro e quatro horas já estar a caminho de Mossoró”, conta, com a categoria e a lucidez de quem está há 46 de seus 78 anos seguindo o mesmo destino, diariamente. “Minha vida é um romance”, define. Com direito a capítulos dramáticos, ou tragicômicos. Tanto tempo viajando, são milhares de passageiros, toneladas de encomenda, e inúmeras histórias para contar. Como quando, na altura do KM 60, precisou fazer o parto de uma passageira: “já tinha quase uma hora de viagem quando a mulher começou a sentir dor, não tinha pra onde correr. Fiz o parto mesmo na cabine. Cortei o cordão umbilical com uma peixeira. Graças a Deus deu tudo certo”. O bebê da história hoje tem 18 anos.

O Misto de Raimundinho é guerreiro, já apanhou muito na estrada. Tem capacidade para 16 pessoas na boléia e 42 na carroceria. “Mas já carreguei 115 pessoas de uma vez só”. 115? “Foi, era na véspera de sete de setembro, lá pelos anos 90. Eu dizia que não cabia mais gente, mas ninguém queria ficar e subia de todo jeito”.

Mas das suas histórias uma que não pode faltar é a do dia em que viajou de marcha-ré. “O carro engrenou a caixa de marcha, só dava a ré. Eu num ia ficar em Mossoró, e viajei assim mesmo. Rodei nove quilômetros, até que, por Deus, apareceu um amigo e rebocou meu carro até Limoeiro”. E todas as histórias têm testemunhas, os passageiros das idas e vindas. Gente como dona Maria Concelita de Sousa.

Hoje a estrada é diferente e a história é outra. As mais de quinze horas que levava para percorrer cerca de 140km (encurtados para menos de 100km, via Quixeré) hoje não chegam a três horas, graças ao asfalto. Mas não se livrou de outras peripécias, como assaltos e outros mais.

Todo ano, entre junho e julho, fica exposto nas comemorações do Chuva de Bala no País do Mossoró, em alusão à resistência daquele povo ao bando de Lampião. As viagens da “RK Tur”, empresa de um dos filhos, continuam na linha Limoeiro-Mossoró, de topic, microônibus ou ônibus, “dependendo do tanto de gente. Mas se não tiver ninguém eu vou do mesmo jeito”, conta Raimundinho, que, em seu misto, já fez 526 viagens com romeiros para Canindé, Juazeiro e Tabuleiro do Norte.

O misto de pau-de-arara é uma relíquia da história de limoeirenses e mossoroenses. É relicário da memória de muitos, que dentro dele trafegaram em árduas viagens entre os dois Estados, para comprar, vender, passear, estudar ou trabalhar. Mas a grande testemunha de vida é dona Isolda, como é chamada sua esposa Maria de Sales Nunes, 75 anos. Simpática e solícita, fez questão de que o companheiro aparecesse bonito na foto. Começou a namorar com 12 anos de idade, aos 14 casou – precisou mudar a idade para se casar aos 15. “Eu sou feliz, não tenho do que reclamar. Tenho minha família, meu trabalho, me dou bem com todo mundo. Não sou rico, mas não tenho inveja”.

Filmado para o documentário Possantes Velhos de Guerra (participante do Cine Ceará), homenageado pela Federação dos Transportes (Cemipar) com o prêmio comemorativo aos 150 anos de transportes com passageiros e o troféu “Valor da Terra”, pela colônia Limoeirense em Fortaleza, ele ainda recebe encomendas e toda noite anota nome e endereço dos passageiros da madrugada seguinte.

Está escrevendo um livro com sua história para lançar em dezembro de 2009, pelos 80 anos. Enquanto isso, vai rabiscando a vida e segue o lema do pára-choque de seu caminhão: “Deus é meu guia”.

Mais informações:
Raimundinho do Mixto
Passageiros e encomendas
Limoeiro (CE) e Mossoró (RN)
Limoeiro do Norte
(88) 3423.1623

MELQUÍADES JÚNIOR
Colaborador

ENQUETE
Raimundinho do ´Mixto´ agrada população

Maria de Sales Nunes (Isolda)
Esposa de Raimundinho

Ele quer o maior bem ao Misto e foi com ele que conseguimos criar os filhos. Ainda hoje todo mundo fica olhando.

Maria Concelita de Sousa
Assídua passageira

Tem mais de 30 anos que eu viajo direto com Raimundinho. Ele tem todo cuidado, dá muita segurança.