Mestre Piauí comanda Folia de Reis em Quixeramobim

Escrito por Redação ,
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Reisados intensificam manifestações populares nas festas natalinas exaltando a peregrinação dos reis magos

Quixeramobim. O Menino Jesus já nasceu. Então, é hora de sair pelas ruas entoando versos, anunciado a visita dos Reis Magos ao Filho de Deus. Cantadores, pastorinhas e guerreiros, acompanhados de sanfona, violão, reco-reco, pandeiro, bumba e outros instrumentos, passam de porta em porta em busca de oferendas para o Pequeno Salvador. Os presentes podem variar de uma xícara de café a um prato de comida.

Agradecem cantarolando. Herdada dos colonizadores portugueses, essa tradição se mantém viva pelas cidades do Interior. Quixeramobim, no coração do Ceará, é uma dessas cidades. Há mais de meio século, o Mestre da Cultura, Antônio Batista da Silva, ou simplesmente Piauí, comanda a folia de reis na sua terra natal. À frente dos cordões encarnado e anil, é ele quem puxa os cantos preservando a tradição oral de geração em geração.

Além dos filhos, adolescentes e crianças da comunidade, onde o folclorista reside, acompanham seus passos no cortejo sem rumo. Seguem noite adentro exaltando o estandarte da anunciação até o Dia de Reis, 6 de janeiro.
Quando o cortejo passa não há quem resista, todos saem à rua para saudar Piauí e seus seguidores.

Os personagens somam 17 pessoas e todos trajam roupas muito coloridas. Além do Mestre, o grupo é composto por um contra-mestre, Katerina, uma espécie de palhaço, de um careta, os guerreiros, as princesas índias e ainda o rei e a rainha. Não é por menos, o folguedo envolve mesmo o público.

Os mais dispostos acompanham ruas abaixo, ruas acima. Quando param na porta de alguém são recebidos com aplausos. Os mais velhos fazem saudações religiosas. Alguns abrem apenas as janelas para entregar as oferendas. Outros escancaram as portas e acendem as luzes para receber os brincantes com refeição para todos, afinal, a caminhada é longa. Zilma de Brito, 71 anos, faz questão de acomodar o mestre e sua comitiva dentro de sua casa.

Em seguida, serve o “banquete”. Ainda na mocidade, ela criou gosto e passou a admirar os reisados junto com seus pais. Há décadas recebe Mestre Piauí e sua gente na sua porta. A cada ano a admiração pelo folguedo aumenta, confessa.

O ponto alto da Festa de Santo Reis, como o mestre costuma tratar o folguedo do ciclo natalino, é a matança do boi, dedicada aos Reis Magos: Baltasar, Melchior e Gaspar. Deles, sabe apenas os nomes e o motivo da homenagem, por conta da visita dos nobres à manjedoura do Menino Jesus.

A representação é feita no terreiro diante de uma imensa plateia. Por conta de tantas oferendas, às vezes, são obrigados a repetir o ato em vários lugares diferentes. Ontem, o ritual foi na casa do historiador Ailton Brasil. Ele é o atual presidente do Instituto do Patrimônio Histórico Artístico e Natural de Quixeramobim (Iphanaq).

Apesar da animação, o Mestre da Cultura, título recebido do Governo do Estado em 2005, anda preocupado. Ele já passa dos 70, as pernas e o fôlego começam a ficar mais pesados, por conta do excesso dos maços de cigarro. Puxar todos os cantos, agora, só com auxílio de caixa de som.

O filho, Edmar da Silva, e o neto, Mateus, ajudam, mas a maioria do cancioneiro estava guardado apenas na memória. Lembrar de todas só com muita atenção e anos de dedicação. São exemplos de músicas: “Ó de casa/ Ó de fora / Mãe Jerônimo está aí?/ É o cravo/ É a rosa/ É a flor do bugari/ Esta casa esta bem feita/ Por dentro cravos e rosas/Por fora manjericão” e “Senhora dona da casa/ Abra a porta/ Acenda a luz/ Venha ver o Santo Reis/ Fazendo o sinal da cruz”.

São Joaquim

Em Senador Pompeu, Município vizinho, o folguedo dos Caretas de São Joaquim percorre os pequenos povoados sertão adentro. O cortejo, tendo entre seus personagens o Boi, a Ema, a Burrinha, o Jumento e o Zé Bundinha, sai abrindo portas com sapateados e cantoria intensa.

Um misto de sagrado e profano. Representa o retorno dos Reis Magos da visita ao Menino Jesus. Bem diferentes de outros grupos, os brincantes usam máscaras para não serem reconhecidos por Erodes, conta o Mestre João Inácio.

Esse ritual, característico da região Central do Ceará, é realizado em São Joaquim há mais de 55 anos. Devido ao isolamento da comunidade, situada no sopé da serra da cidade de Pedra Branca, mantém a originalidade da apresentação tal qual era no início do século XX.

Seus principais Mestres, João Inácio e João André, aprenderam a tradição com os pais. Os outros integrantes também e vivem o ritual até o dia 6.

Enquete
Valor cultural

"Nesta época, são os reisados que dão alegria a quem ama suas raízes sertanejas, à cultura que aprendeu na infância"

Zilma de Brito
Aposentada

"As manifestações são espetaculares. Quem não admira a tradição não valoriza a sua própria origem"

Francisco Raimundo Barbosa
Pedreiro

MAIS INFORMAÇÕES

Reisado do Mestre Piauí
Telefone: (88) 9225.5815
Iphanaq : (88) 9998.7434
Município de Quixeramobim

PRESERVAÇÃO CULTURAL

Memória musical da festa é gravada em CD pelo Iphanaq

Quixeramobim. Além dos figurinos multicores, dos personagens esquisitos e do Bumba Meu Boi, um dos mais importantes integrantes do folguedo de reis, a sonoridade da evolução nas ruas e terreiros é elemento essencial no seu desenvolvimento.

Sem as canções, evocando a história religiosa e os apelos dos brincantes nas portas das casas, as apresentações estariam fadadas a um arrastado apático e uma dança sincronizada sem sua principal essência, a música. Pensando na preservação e divulgação dessa sonoridade especial, o Instituto do Patrimônio Histórico Artístico e Natural de Quixeramobim (Iphanaq) resolveu produzir um CD.

Desde a sua fundação, em junho de 2004, o Instituto tem se empenhado na promoção e preservação do patrimônio histórico, material e imaterial desta cidade. Atualmente, no meio do Ponto de Cultura Patrimônio Vivo, o Instituto desenvolve oficinas e projetos. Um dos mais recentes é a produção do CD.

Busca a perpetuação da musicalidade do Reisado de Mestre Piauí por meio da tecnologia. As 22 faixas foram catalogadas e gravadas em estúdio. A proposta é juntar o acervo musical do grupo folclórico e promovê-lo, explica o presidente do Iphanaq, Ailton Brasil. “A produção, com orçamento superior a R$ 20 mil, só pode ser realizada graças a outro movimento encabeçado pelo Iphanaq”, acrescentou Brasil.

Os recursos vieram de um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) aplicado pelo Ministério Público de Quixeramobim. Um comerciante da cidade foi multado após iniciar a demolição de um prédio considerado histórico, o Casarão de José Felício.

Além de evitar a destruição do imóvel, com o apoio de vários segmentos da sociedade e da Prefeitura, está sendo possível sonorizar digitalmente as canções do Reisado. A diretoria do Iphanaq ainda não definiu o lançamento. Segundo o coordenador do Ponto de Cultura da ONG, Neto Camorim, mil cópias já estão asseguradas, mas ainda não foi decidido onde será distribuído.

A opinião do especialista
Danilo Patrício*

Devoção de alegria

A composição cultural assistida hoje pode ser vista como Boi de Reisado na medida em que traz, no chamado ciclo natalino cristão que se encerra no Dia de Reis, o enredo que tem como personagem o boi de dançar, morto pelo vaqueiro em nome do desejo feminino de comer o coração, e ¨envivecido¨ pelo mesmo em nome da festa.

Em tal imbricação constroem-se experiências de promessas para o santo reis, como se referem participantes da festa ao rei negro Baltazar, um dos três que presenteiam o Menino na liturgia cristã. A festa do Reisado encerra-se anualmente com um banquete na casa do mestre, onde são consumidas as doações do período na ¨tiração de reis¨ - comida e bebida -, incluindo arrecadação no comércio da cidade, e as contribuições de quem comparece ao almoço final.

Entre as doações estão oriundas de promessas a santo reis, ofertadas à festa como agradecimento a uma graça conquistada, como a vaca encontrada da senhora que todos os anos oferta uma cesta para o banquete. Uma crença também pela devoção da alegria.

Ofertas como essa que contribuem para a concretização de um banquete comunitário numa festa de pobres que se mistura com as demais forças da cidade, entre conflitos e alianças. Cânticos, coreografias e indumentárias possibilitam perceber na festa de hoje agregação de outros repertórios, como as congadas e os caboclinhos. Os relatos orais de hoje atingem o início do século XX.

Mestre em História Social – UFC*

ALEX PIMENTEL
COLABORADOR