Ex-morador de rua supera dificuldades e se torna diretor de escola em Juazeiro do Norte
À reportagem, Francisco Renato Silva Ferreira chegou a dizer que seus pais haviam morrido. Após ser questionado, retratou-se. Diante das dúvidas, quando foi pedido para confirmar se havia mesmo vivido na rua, ele não respondeu
Das ruas à sala de aula. Se isso já era uma grande vitória na vida do professor Francisco Renato Silva Ferreira, chegar ao cargo de diretor de uma escola de Juazeiro do Norte, em janeiro deste ano, tem sido o grande prêmio por tudo que lutou. Aos 35 anos, formado em Educação Física e Pedagogia, Renato driblou diversos obstáculos para conseguir seus diplomas e se tornar uma grande inspiração.
[Atualização: após a repercussão da matéria, Renato Ferreira gravou um vídeo desculpando-se por ter dito que os pais haviam morrido em um acidente de carro. Na nova versão dada pelo professor, ele admitiu que os pais estavam vivos, "mas para mim essas pessoas estavam mortas", devido a questões pessoais. A afirmação de que ele viveu na rua também foi questionada por conhecidos dele. Ferreira havia confirmado que esteve por cerca de dois anos nas ruas, inclusive em entrevista gravada em vídeo pela TV Verdes Mares Cariri. Contudo, após ser questionado sobre isso, ele não respondeu à reportagem e não retorna mais os contatos.
A matéria foi feita por sugestão da Secretaria de Educação de Juazeiro do Norte. Procurada a se manifestar sobre os questionamentos, o órgão afirmou em nota que a informação prestada "foge do controle" da instituição, "uma vez que o teor da entrevista e matéria que foi ao 'ar', dizem respeito a vida, trajetória e caminhada pessoal" do professor.]
Antes de desembarcar na terra do Padre Cícero, o professor viveu nas ruas de Icó, durante a infância. Mesmo longe de um teto, já conciliava os estudos com a rotina da cidade. “Hoje me orgulho da minha história e tento compartilhar um pouco com as pessoas”, conta.
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De canoa para a escola de taipa
Natural de Orós, foi para Icó morar com avó e sua tia. A luta por sua educação começou no Sítio Mulungu, onde diariamente era obrigado a atravessar o açude Lima Campos de canoa para estudar numa sala de aula improvisada, instalada em uma casa de taipa e coberta por uma lona. Lá, ficou até a sexta série. “Nunca me senti bem. Quando perdi a presença de meus pais, a rua me acolheu”, lembra.
Aos nove anos e vivendo nas ruas, conheceu um pastor que o incentivou a estudar. “Ele perguntou qual era meu sonho e ali já dizia: ‘estudar e ser professor’”. Com o apoio para material didático conseguiu concluir o ensino básico. Naquele momento, já almejava se formar em Educação Física. “Eu tenho hiperatividade e nos testes vocacionais sempre indicavam profissões de movimento, ligado a parte de psicomotricidade. Sou bem elétrico”, brinca.
Dificuldades em Juazeiro do Norte
Em 2005, Renato chegou a Juazeiro do Norte, onde conseguiu um emprego no popular mercado do Pirajá como vendedor. Na época, ganhava R$ 35 por semana. Depois, passou a trabalhar na mesma função, mas em uma loja de roupas.
Ali, já estava tentando vestibular para Educação Física na Universidade Regional do Cariri (Urca), mas sem sucesso. O ingresso foi conquistado em uma faculdade privada, mas não conseguia bancar a mensalidade de aproximadamente R$ 370.
A vida mudou ao conhecer a gerente de uma loja, que soube de sua história e ofereceu um teste para trabalhar em sua empresa.
Com a aprovação na avaliação, começou um novo emprego no dia seguinte após o primeiro contato. Com o salário, conseguia garantir sua graduação, mesmo que a duras penas. O dinheiro era dividido entre a mensalidade e o aluguel do seu quitinete. “O que sobrava, não dava para passagem, comida”, descreve.
Suas colegas de trabalho, na hora do almoço, dividiam sua refeição com ele. Além disso, o caminho até o trabalho e à faculdade era feito a pé, percurso de cerca de 15 quilômetros diários, para economizar.
Mudança
Tudo isso durou até o sexto semestre, quando conseguiu um estágio no Programa Segundo Tempo, iniciativa do Governo Federal que oferece práticas esportivas para jovens com idades entre 6 e 17 anos, prioritariamente de áreas de vulnerabilidade social e matriculadas na rede pública de ensino. Renato conseguiu deixar a loja e se dedicar ao curso que, dois anos depois, concluiria.
Com o diploma na mão, ele conseguiu a vaga de coordenador de núcleo no programa Segundo Tempo. Em seguida, iniciou o projeto das academias populares, onde foi professor. Na Secretaria de Esporte e Juventude permaneceu até 2016, onde passou a trabalhar na Secretaria de Educação do Município.
Quando migrei para a Educação, fiz foi me apaixonar. Me deparar com realidades, histórias semelhantes ao que passei. Foi aí que vi que poderia contribuir, ajudar motivando”
Foi o contato com a Educação de perto, atuando na gestão, seja como coordenador escolar ou gerente educacional, que o motivou a cursar Pedagogia. Hoje, já está cursando o mestrado em Ensino em Saúde, trabalhando a educação inclusiva em Juazeiro do Norte.
Sua pesquisa aborda a inclusão de adolescentes com síndrome de Down nas aulas práticas de Educação Física. Paralelo a isso, conseguiu ter um artigo científico publicado em uma revista internacional. “Nele, falamos sobre a formação de profissionais em educação”, detalha o professor.
Desafio de ser diretor
Em janeiro deste ano, Renato assumiu o cargo de diretor da Escola de Ensino Fundamental em Tempo Integral Vereador Francisco Barbosa da Silva, que fica no bairro Horto, e atende comunidades da zona rural daquela região. Desde o começo, procurou conhecer a realidade dali e ajudar a transformá-la.
“Os desafios são gigantescos. A pandemia, por si só, já traz várias questões para enfrentar, como a evasão escolar, as perdas de aprendizado. Por ser uma unidade de zona rural, muita gente tem acesso à internet precário e muitos nem têm”, detalha.
Sem aulas presenciais, o novo diretor já projeta um futuro retorno, que vem sendo discutido por um comitê montado pela Secretaria de Educação de Juazeiro do Norte. Nele, será elaborado um plano, que será adequado à cada unidade de ensino.
A gente está aguardando, mas já pontuamos algumas coisas, como a adequação da nossa escola, que tem salas amplas, prédio novo, que possibilita um retorno com mais segurança”
Desde que assumiu a direção, o professor também tem buscado recuperar a credibilidade da Escola Francisco Barbosa da Silva, que por muitos anos ficou estigmatizada pela violência na comunidade. Até agora, o trabalho tem caminhado bem já que a unidade possuía 314 alunos quando assumiu e, hoje, já soma cerca de 360 estudantes.
“Um número significativo. Esse resgate passa pela gestão participativa, democrática, criação de redes sociais e e-mails institucionais, restituição de conselho escolar. Tudo isso para reaproximar a comunidade”, completa Renato.