Caldeirão do Deserto acumula marcas de abandono enquanto espera promessas para integrar geopark
A comunidade foi alvo de ataques pelo Governo Federal na década de 1930. Além de unidade, o sítio deve ganhar memorial contando sua história
Há exatos quatro anos, no dia 10 de outubro de 2017, um seminário era realizado no Caldeirão da Santa Cruz do Deserto, em Crato, como pontapé inicial das discussões para transformá-la em uma unidade de conservação (UC) e, futuramente, um geossítio que integrasse o Geopark Araripe.
Apesar de sua importância histórica, de lá para cá, o assunto pouco avançou. O local, que é alvo de devoção e visitas, principalmente em setembro, recebe poucas pessoas e não oferece uma estrutura atrativa.
Com o seminário “Caldeirão da Santa Cruz do Deserto: uma construção coletiva”, que contou com a participação do secretário de Meio Ambiente do Ceará, Artur Bruno, o debate pela criação da UC ganhou força, a partir de 2017.
A Secretaria de Meio Ambiente e Desenvolvimento Territorial de Crato (SEMADT) chegou a concluir o georreferenciamento da área, que pertence à Prefeitura de Crato, em 2018.
A criação da nova UC, até então, ficaria a cargo do município, que cogitava a instituição de um Monumento Natural de Interesse Cultural e Ambiental, classificação destinada para a preservação de lugares singulares, raros e de grande beleza cênica, permitindo diversas atividades de visitação. Com a pandemia, o processo estagnou.
Nivaldo Soares, diretor-executivo do Geopark Araripe, admite que a chegada da Covid-19 atrapalhou, mas o processo de definição da área que faz parte de sua propriedade, ação da prefeitura, foi lento.
Geologia, Cultura e História
De qualquer forma, a SEMADT apresentou a planta, que soma cerca de 228 hectares no Caldeirão. “Nós, por outro lado, tivemos o trabalho de realizar inventário da área, não só geológico, mas os aspectos ligados à cultura e história, elementos que fazem parte da criação de um geossítio”, detalha.
O município ficou de enviar ao Geopark o perímetro, planta e, dentro dela, definir a área trabalhada com o geossítio. Com o processo paralisado, a Secretaria de Meio Ambiente do Estado (Sema) decidiu participar, diretamente, da criação de cinco unidades no Cariri, dentre elas, o Caldeirão da Santa Cruz do Deserto.
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A gestora da Conservação da Diversidade Biológica (Cedib/COBIO) da Sema, Andréa Moreira, explica que o Estado firmou uma parceria com a Universidade Regional do Cariri (Urca) para elaborar os estudos técnicos de cinco unidades. Além de Crato, serão beneficiadas as cidades de Juazeiro do Norte, Barbalha, Santana do Cariri e Lavras da Mangabeira.
No caso do Caldeirão, já foi entregue à pasta o primeiro produto, no caso, o plano de trabalho, que apresenta o cronograma junto ao Caldeirão. “De início, acredito que até março e abril de 2022, os estudos estejam completos, com realização de consulta pública e proposta final”, projeta.
Após pensar, a partir dos dados cartográficos e bibliográficos, serão definidos os limites da nova unidade e seu plano de manejo. O processo vai passar, não só pelas mãos de pesquisadores, mas aberto à participação da população.
Após tudo isso, deve chegar à Casa Civil e ser criada, por meio de decreto, assinado pelo governador do Estado, a nova unidade de conservação. A projeção é que o processo seja concluído em 2022. “A gestão será estadual, mas com participação paritária de 50% governamental e 50% da sociedade civil”, detalha Andrea.
Com a criação da UC, Nivaldo acredita que haverá poucas dificuldades para a inclusão do Caldeirão como geossítio. “É mais difícil estabelecer o reconhecimento de um Geopark que agregar novas áreas, ainda mais a incorporação de um que já está no nosso terrório”, explica.
A área do geossítio será menor que a da unidade, integrando entre três a dez hectares. Segundo Nivaldo, o local apresenta afloramentos do cristalino, que chamam atenção pelos paredões de pedras e grandes blocos. Além da questão geológica, a fauna e a flora trazem características interessantes.
“Lá, por não ter muito desmatamento, área de plantio, mantém espécies da caatinga como tatu e veado. Com relação à flora, resistem espécies de árvores como a umburana, que é muito utilizada no artesanato e acaba sendo uma madeira muito perseguida”, exemplifica.
Memorial
Em maio deste ano, a Secretaria de Cultura de Crato apresentou a proposta de criar um memorial no Caldeirão. Lá, vizinho à Igreja, há um prédio construído pela prefeitura na última década que serve de apoio durante a Romaria, em setembro, e que seria adaptado.
De acordo com o titular da pasta, Amadeu de Freitas, o projeto já está em estudo e foi apresentado à Secretaria de Cultura do Ceará (Secult). “A ideia é ter o maior número de parceiros”, explica.
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Segundo Amadeu, foi instituído um grupo de trabalho entre representantes da Urca, Secult e a sua Secretaria para elaborar um projeto. Na semana passada, o grupo apresentou o primeiro documento para estruturar o Memorial, contendo a reforma do prédio do museu e a constituição de uma comissão na área de história para elaborar a narrativa do Caldeirão.
“Ela seria base para o projeto expográfico do museu. A partir dele, também faremos trabalho de catalogação e busca de objetos que possam contar esta história”, detalha Amadeu.
Numa ideia mais audaciosa, o secretário projeta um trabalho de prospecção para tentar encontrar, naquela área, outros vestígios da passagem da comunidade. “Evidenciar objetos, ritos daquele local”, completa. Contudo, neste momento, a prioridade é tirar do papel propostas que valorizem o Caldeirão.
Dentro entra obra de pavimentação do acesso, estruturação do local para receber visitas, gestão dos equipamentos como a capela, a casa, as ruínas do casarão do Beato”
Visitas todos os dias
A família de Raimundo Batista, 77, é a única que se mantém morando no Caldeirão. Hoje, na sua visão, o local carece de visitantes e, por causa da pandemia, a procura diminuiu muito. “Mas aqui não tem sábado, domingo ou segunda. Aparece em qualquer dia, seja do Pernambuco, Paraíba, Piauí”, descreve.
Em setembro, a comunidade recebe milhares de visitantes na chamada Romaria da Santa Cruz do Deserto. Sua 20ª e última edição aberta ao público, em 2019, reuniu cerca de 3 mil pessoas. O evento foi criado por entidades eclesiais de base, pensando em resgatar a história de uma comunidade “de certa forma abafada”, confessou o padre Vileci Vidal, um dos idealizadores.
Este ano, por causa da pandemia, assim como em 2020, foi realizada uma pequena missa reunindo as entidades de base, movimentos sociais e comunidades próximas. Projetando o retorno de visitantes, Vileci acredita que os projetos para o Caldeirão agregarão à comunidade.
“A memória do Caldeirão é um dos aspectos mais importantes da história regional, sobretudo quando falamos de política do bem comum, do protagonismo dos camponeses, na experiência de reforma agrária”, ressalta o sacerdote.
O massacre do Caldeirão
No dia 11 de maio de 1937, as Forças Armadas e a Polícia Militar do Ceará, sob ordem do Governo Federal, invadiram a comunidade do Caldeirão da Santa Cruz, em Crato. Parte dos seus moradores foram mortos e os sobreviventes expulsos de suas terras. Seu líder, o beato José Lourenço, e seus seguidores fugiram.
Sua história começou no final do século XIX, quando o agricultor José Lourenço Gomes da Silva, peregrino paraibano, migrou até Juazeiro do Norte e se tornou um beato de confiança do Padre Cícero. O sacerdote arrendou uma terra do Sítio Baixa Dantas, em Crato, onde José e os flagelados que chegassem ao Cariri pudessem prosperar na agricultura comunitária e na fé. E assim aconteceu até 1926, quando as terras foram vendidas.
Depois disso, o Padre Cícero cedeu uma de suas propriedades na fazenda conhecida como “Caldeirão dos Jesuítas”, local que teria sido esconderijo dos jesuítas no século XVIII, onde recomeçam o trabalho comunitário com base na religião. Liderados pelo beato José Lourenço, lá, a produção era dividida igualmente e o excedente era vendido para compra de outros produtos, como remédios e querosene.
A seca de 1932 é lembrada, tanto na literatura como na oralidade, como uma das mais perversas que castigou o Nordeste na primeira metade do século XX. Foi esse fenômeno de escassez de água e alimento impulsionou o crescimento do Caldeirão da Santa Cruz do Deserto, que chegou a receber 1.700 pessoas.
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Temendo que a comunidade se tornasse um movimento messiânico, o Governo Federal, ordenou, em setembro de 1936, a primeira invasão à comunidade, que foi dispersada por forças policiais. Em 11 de maio de 1937, dessa vez foram as Forças Armadas, que bombardearam e destruíram a comunidade. Nove anos depois do episódio, José Lourenço morreria em Exu, vítima da peste bubônica.
“O Caldeirão ofereceu alimentação para as pessoas que chegaram, tempo que aumentou a população, se vivia com cuidado para não deixarem morrer, passar fome, manter a espiritualidade integrada com a luta com a terra. Eram pessoas marginalizadas, refugiadas, buscando reintegrar a sua espiritualidade, fugindo do cangaço. Uma comunhão integrada no campo social, político e social”, finaliza Vileci Vidal.