Legislativo Judiciário Executivo

Por que deputados são punidos com cassação mesmo sem culpa direta na fraude à cota de gênero?

Mesmo sem qualquer indício de envolvimento no esquema fraudulento, Alcides Fernandes, Dra. Silvana, Marta Gonçalves e Carmelo Neto também tiveram os mandatos cassados

Escrito por Igor Cavalcante, Luana Barros , politica@svm.com.br
Carmelo, Dra Silvana, Marta Gonçalves e Alcides Fernandes
Legenda: Carmelo Neto, Dra Silvana, Marta Gonçalves e Alcides Fernandes foram os eleitos pelo PL para o cargo de deputado estadual em 2022
Foto: Divulgação/Alece

A decisão do Tribunal Regional Eleitoral do Ceará (TRE-CE) de cassar toda a chapa de candidatos a deputado estadual do PL do Estado nas eleições do ano passado atingiu diretamente os parlamentares Alcides Fernandes, Dra. Silvana, Marta Gonçalves e Carmelo Neto – o mais votado na disputa pelo cargo no ano passado. Os mandatários, no entanto, ainda podem recorrer ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e ao Supremo Tribunal Federal (STF).

Mesmo sem qualquer indício de envolvimento no esquema fraudulento, os quatro deputados também tiveram os mandatos cassados, por ordem da Justiça Eleitoral. A condenação levantou dúvidas sobre o motivo dessa punição ter atingido também quem não organizou a fraude.

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Conforme Pryscila Marins, advogada e membro da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (Abradep), o cerne da decisão é que todos os candidatos apresentados pelo partido foram beneficiados, em algum grau, com a ilegalidade.

“Nas eleições para cargo proporcional, o voto é dado a um partido, não diretamente a um candidato, então, se o partido dele contribuiu para a fraude, ele não pode querer aproveitar os votos, que foram a ele dados, por conta da fraude. Independente do número de votos dado ao candidato ‘a’, ao ‘b’ ou ao ‘c’, esses votos foram conquistados por conta de uma fraude, se não houvesse fraude, ele não teria conquistado esses votos”
Pryscila Marins
advogada e membro da Abradep

Ela ressalta ainda que o que macula toda a chapa é que a fraude é anterior à definição de quem foi ou não eleito.

“Quando você inscreve uma candidatura, antes de você inscrever a pessoa, o candidato isoladamente, você tem que inscrever a chapa, quem faz isso é o partido. A chapa é inscrita através de um documento chapado Drap, que é o Demonstrativo de Regularidade de Atos Partidários”, explica a advogada.

Ela aponta que uma dessas regularidades é cumprir justamente a cota de gênero, respeitando um percentual mínimo de 30% de candidatura de um gênero e 70% de outro. “Quando o Drap é apresentado, a Justiça Eleitoral faz uma análise meramente matemática para checar se cumpriu a cota de gênero”, continua Marins.

Acontece que esse não é o único mecanismo de fiscalização. “No decorrer da candidatura, você verifica, por exemplo, que aquelas mulheres foram indicadas apenas para cumprir a cota de gênero ou algumas que nem sequer sabiam que eram candidatas, aí você tem uma situação em que, a princípio, é lícito, porque cumpriu a cota, mas está em fraude à lei, porque há atitude ilícita para burlar o sentido da norma, que é aumentar a presença feminina nos espaços de poder”, afirma a advogada.

Assim, todo mundo acaba afetado porque o que está maculado é o Drap, algo que antecede a personificação de um ou outro candidato.

“A cassação existe porque a fraude vem de um documento – o Drap – que valida as demais candidaturas individuais, então a decisão tem inclusive um cunho pedagógico, para que o partido e o próprio candidato possam fiscalizar os partidos no tocante ao cumprimento da cota de gênero" 
Pryscila Marins
advogada e membro da Abradep

“Antes dele ser candidato, ele precisa que o Drap seja deferido, e o Drap, neste casos, só foi deferido por conta de uma fraude. Ou seja, se a fraude não existisse nem sequer existiria ele como candidato (...) Ele só recebeu votos porque houve uma fraude que permitiu que ele fosse candidato, ainda que ele não tenha praticado a fraude, mas quem o inscreveu praticou”, conclui.

Casos cearenses

No caso envolvendo a chapa do PL, foram justamente os indícios apontados pela advogada que acenderam o alerta da possível fraude. Ao todo, a Justiça Eleitoral analisou quatro ações que denunciavam candidaturas fictícias de mulheres ao cargo de deputado estadual. 

Nos autos do processo, são citados indícios de, pelo menos, seis candidaturas fraudulentas. Entre os elementos citados, está a votação inexpressiva das candidatas e a ausência de atos de campanhas – sejam presenciais ou por meio das redes sociais. Também são citadas as prestações de contas, que não possuem receitas e despesas, por exemplo.

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Duas das mulheres registradas como candidatas, Maria Meirianne de Oliveira e Marlúcia Barroso Bento prestaram depoimento, no qual afirmaram não terem consentido com as candidaturas. Segundo elas, o PL Ceará teria utilizado a documentação e a foto apresentadas por elas quando foram candidatas a vereadora de Fortaleza em 2020. 

Dos quase 500 mil votos obtidos pelos candidatos do PL na disputa pela Assembleia Legislativa, Marlúcia Barroso recebeu 30, enquanto Maria Meiriane recebeu 113. Além disso, ambas afirmaram terem trabalhado na campanha de outro candidato a deputado estadual, filiado ao União Brasil.

O papel dos partidos políticos

Pryscila Marins considera que esse caso e outros semelhantes têm um caráter "pedagógico" para que os políticos se atentem sobre a importância dos partidos políticos. 

“A partir do momento que o sistema partidário brasileiro prevê o partido com o monopólio das candidaturas, ele prevê que o candidato responde pelo partido e pela ideologia do partido. Por mais que não seja isso que a gente vê na prática, o escopo da lei é esse. Então, os candidatos precisam acompanhar a vida partidária porque eles dependem do partido, dependem que o partido ande direito para que a candidatura não venha a ser cassada” 
Pryscila Marins
advogada e membro da Abradep

“Infelizmente, esse conteúdo pedagógico de cassar do mundo para que a cota de gênero possa ser respeitada só está existindo porque ainda existe uma resistência muito grande, inclusive nos diretórios partidários, de reconhecer uma injustiça praticada há anos em relação a mulheres nos espaços de poder. Se não tivéssemos essa injustiça enraizada na nossa sociedade, a gente nem sequer precisaria de uma política afirmativa para isso, até porque nós somos mais da metade do eleitorado brasileiro”, conclui a advogada.

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