Legislativo Judiciário Executivo

PEC do plasma: entenda o que os senadores estão discutindo sobre a 'comercialização de sangue'

Proposta visa alterar trechos de artigo da Constituição Federal para permitir coleta e processamento de componente do sangue humano por empresas e instituições públicas

Escrito por Bruno Leite , bruno.leite@svm.com.br
Sessão da CCJ sobre a comercialização do plasma
Legenda: Proposta prevê que os fármacos desenvolvidos serão destinados preferencialmente para o SUS.
Foto: Lula Marques/ Agência Brasil

A Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) do Senado Federal, responsável por avalizar a constitucionalidade de proposições que tramitam no Parlamento, aprovou, na última quarta-feira (4), por 15 votos a 11, a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 10/2023.

Com esse sinal positivo, a medida que visa alterar dispositivos legais para permitir a coleta e o processamento de plasma humano - um dos componentes do sangue - por empresas e instituições públicas irá ao Plenário para ser votada.

Apelidada de "PEC do Plasma", ela pretende alterar trechos do artigo 199 da Constituição Federal, que versa sobre a participação da iniciativa privada na assistência à saúde, modificando a redação do inciso 4º. 

Veja também

De acordo com o que está expresso no substitutivo enviado para apreciação dos demais integrantes da Casa Legislativa, serão adicionados mais dois incisos, que legislam sobre os requisitos para coleta, processamento, comercialização de plasma humano pela iniciativa pública e privada, para fins de uso laboratorial, desenvolvimento de novas tecnologias e de produção de biofármacos destinados ao provimento preferencial do Sistema Único de Saúde (SUS).

O inciso que está poderá ser emendado já citava a possibilidade de que órgãos, tecidos e substâncias humanas também pudessem ser coletados para pesquisa e tratamento. Com o texto que tramita no Congresso Nacional, essa disposição passou a ser descrita de maneira mais ampla nas que foram adicionadas. 

Excetuando o plasma, os demais materiais biológicos cuja finalidade seja a realização de procedimentos de transplante, coleta, processamento e transfusão e sangue e seus derivados, assim como para coleta, processamento e transfusão de sangue e seus derivados, todo e qualquer tipo de compra e venda continua sendo vedado, da maneira como está colocado na Carta Magna atualmente. 

Caso seja promulgada, como está expresso no texto atual, a iniciativa privada poderá atuar de maneira complementar no âmbito das atividades voltadas para a assistência em saúde promovidas pelo SUS, conforme demanda do MS. 

Debate e votos contrários

Segundo a justificativa apresentada pelo autor da PEC, Nelsinho Trad (PSD), a matéria resolve um problema de desperdício de "milhares de bolsas de plasma no Brasil". Ele menciona uma solicitação do Tribunal de Contas da União (TCU) e o Ministério Público (MP), endereçada ao Ministério da Saúde (MS) em 2020, para que fosse equacionada a problemática causada pela perda do componente. Pelo que afirma o texto, em 2017 foram perdidos litros.

Outro ponto que justificaria a emenda, de acordo com o parlamentar, seria a queda na coleta da substância "em nível mundial", registrada após a pandemia da Covid-19. O entendimento do social democrata é de que haveria um aprimoramento na legislação, possibilitando uma atualização acerca do assunto.

A PEC é alvo de críticas de políticos. Durante a sessão da CCJ que deliberou sobre a aprovação, houve uma sugestão do senador Marcelo Castro (MDB) para ser permitida a comercialização de serviços de processamento do plasma, não o próprio. 

Sessão da CCJ
Legenda: Debate se alongou por quase quatro horas na CCJ
Foto: Pedro França / Agência Senado

O serviço proposto por Castro dependeria de autorização do Ministério da Saúde. Em seu parecer, a relatora da proposta, a senadora Daniella Ribeiro (PSD) negou a alternativa, pois poderia limitar a capacidade de produção e afastar os investimentos do setor privado. Ela concordou que as leis do País estão defasadas e ratificou a justificativa de desperdício apresentada pelo autor com dados do TCU.

Membros da Casa Alta como Mara Gabrilli (PSD), Rogério Carvalho (PT), Humberto Costa (PT) - que foi ministro da Saúde no primeiro governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) -, Zenaide Maia (PSD) e Professora Dorinha Seabra (União) demonstraram posição contrária ao que está sendo proposto.

Líder do Governo no Senado, o senador Jaques Wagner (PT) problematizou o interesse de empresas estrangeiras na matéria-prima e a detenção da tecnologia por elas. "Vai se pegar o plasma, sangue de brasileiro, vai ir lá fora... E não está nem escrito que obrigatoriamente é para atender ao mercado brasileiro, é 'preferencialmente o brasileiro'", acusou. 

O baiano continuou: "Então eu estou avisando a vossas excelências: o que nós vamos fazer é entregar plasma humano brasileiro para atender os imunodeficientes, não aqui do Brasil, mas os dos países ricos que podem pagar". Para Wagner, não há interesse nas iniciativas em instalar plantas fabris de imunoglobulina no território nacional, mas apenas na aquisição da matéria biológica.

O propositor da PEC, Trad, defendeu que ela irá possibilitar o provimento de remédios necessários que hoje não são fornecidos na escala necessária pela Empresa Brasileira de Hemoderivados e Biotecnologia (Hemobrás). Outro que demonstrou ser favorável foi o Dr. Hiran (PP), que argumentou a redução do sofrimento de pacientes como válido para acontecer a mudança na lei.

Cumprindo a orientação do seu partido - que com o Movimento Democrático Brasileiro (MDB) determinou tal posição -, a senadora e membro da CCJ, Augusta Brito (PT), demonstrou-se contrária ao tema. 

O Diário do Nordeste procurou os senadores cearenses Cid Gomes (PDT) e Eduardo Girão (Novo), através das assessorias de imprensa, para que pudessem manifestar suas posições sobre o tema. Os dois são suplentes da comissão.

A equipe de Cid preferiu não comentar sobre o assunto, sinalizando outras prioridades de cunho partidário. A de Girão, por sua vez, não respondeu até a publicação desta matéria.

Entidades apontam riscos

No dia em que a proposta foi analisada pela CCJ, integrantes do Conselho Nacional de Saúde (CNS) estiveram presentes no auditório em que a sessão estava sendo realizada para pressionar pela derrubada. A instituição é contrária ao projeto e montou uma estratégia para impedir a sua aprovação.

Em seus canais oficiais, o CNS alertou para o estabelecimento da comercialização, em detrimento da exclusividade na manipulação do sangue humano pelo SUS e a doação voluntária, e para os riscos relacionados. "O mais imediato desses riscos é que as pessoas vulnerabilizadas passarão a vender seu sangue para uma indústria que vai beneficiar os mais ricos, que poderão pagar pelos medicamentos, inclusive fora do Brasil", considerou.

O presidente do conselho, Fernando Pigatto, salientou que a iniciativa é um retrocesso, pois recria um modelo que ameaça os estoques públicos, a regulamentação e a fiscalização de todo o processo. "É mais sério do que apenas deixar de estimular as pessoas a doarem. Se a moda pega, o mesmo vai acontecer inclusive com os órgãos, como coração, fígado e outros", alegou.

bolsa de plasma
Foto: Reprodução / Secretaria de Saúde do Ceará

Ainda na quarta-feira (4), a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) emitiu uma nota se posicionando contra a PEC do Plasma. O comunicado divulgado também destacou os riscos à Rede de Serviços Hemoterápicos do Brasil e ao Sistema Nacional de Sangue, Componentes e Hemoderivados, pelo possível impacto negativo nas doações voluntárias de sangue.

"Além disso, esta prática traz riscos para a qualidade e segurança do plasma e pode ter implicações nas desigualdades sociais. Estudos sugerem, por exemplo, que a comercialização pode atrair pessoas em situações financeiras difíceis, dispostas a vender seu plasma, além de facilitar o acesso a pessoas que podem pagar, em detrimento daquelas que não têm condições", disse.

De acordo com a fundação, sob o monopólio da Hemobrás, o plasma doado atende exclusivamente às necessidades da população brasileira e traz retorno na forma de acesso a medicamentos. Caso isso mude, poderiam ocorrer movimentos de exportação e um recorrente prejuízo, deixando a rede nacional vulnerável diante de emergências sanitárias.

Ambas as instituições, Fiocruz e CNJ relataram que é necessário um fortalecimento da indústria estatal de hemoderivados e biotecnologia, assim como as outras estruturas governamentais voltadas para a política pública em questão.

Sangue não é mercadoria
Legenda: CNS pediu o arquivamento da PEC
Foto: Reprodução / Agência Senado

A Associação Brasileira de Bancos de Sangue (ABBS), entretanto, negou que o projeto que está no Parlamento imponha qualquer forma de remuneração. "Não se trata de pagar pelo sangue ou plasma dos doadores. Logo, é necessário elucidar qualquer mal-entendido em relação a isto", esclareceu.

"Nada mudará em relação ao Sistema Único de Saúde (SUS). Os pacientes continuarão a receber seus medicamentos gratuitamente. A meta é que o governo brasileiro reduza ou elimine a compra de hemoderivados do exterior, ao optar por adquiri-los da iniciativa privada nacional. Isso complementaria a oferta e ampliaria o acesso aos medicamentos para todos os pacientes brasileiros", alegou a ABBS, que apoia a promulgação da PEC.

Assuntos Relacionados