Nova lei da improbidade administrativa pode aumentar risco de impunidade, avaliam especialistas
Enquanto alguns integrantes do Judiciário apontam que mudança irá refletir em maior impunidade, outros consideram a adequação necessária para corrigir excessos
Não é só no Senado Federal que o projeto de lei (PL) 2.505/2021, que traça novas regras sobre improbidade administrativa (Lei 8.429/92), divide opiniões.
Entre juristas, há uma avaliação majoritária de que as novas regras representam um abrandamento em relação às normas atualmente em vigor. No entanto, as divergências surgem a partir daí. Para alguns integrantes do Judiciário, isso refletirá em uma maior impunidade. Já outros consideram essa uma adequação necessária para corrigir excessos contra a administração pública.
Na última quarta-feira (29), os senadores aprovaram a matéria que afeta diretamente regras atualmente em vigor envolvendo agentes públicos, como prefeitos e governadores, em práticas de enriquecimento ilícito e outros crimes contra a administração pública.
Dias depois, no sábado (2), uma decisão liminar do ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), suspendeu trecho da lei vigente. No âmbito de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade ajuizada pelo PSB, ele entendeu que apenas atos graves podem provocar a suspensão dos direitos políticos de condenados.
Conforme o ministro, a decisão está de acordo com as mudanças na lei aprovadas pelos senadores.
Na sessão do Senado, dois pontos foram mais polêmicos. Um deles é a chamada prescrição intercorrente — quando o processo deve ser arquivado caso se passe um determinado tempo (no caso, quatro anos) entre cada uma das suas etapas.
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Especialista em Direito anti-corrupção, o promotor de Justiça Igor Pinheiro classifica a mudança como “o maior retrocesso no combate à corrupção das duas últimas décadas”. “Vivemos um momento de explícita perseguição ao sistema anticorrupção, tanto na perspectiva legislativa quanto na institucional, mas parece que, com a pandemia, as pessoas mal intencionadas resolveram colocar em prática o plano da impunidade”, critica.
Impunidade
Para ele, a prescrição intercorrente é a “pior mudança” votada pelos senadores. “Em um caso de fraude em licitação envolvendo prefeitos e empresários, por exemplo, ainda que um dos empresários denuncie e que o Ministério Público entre com ação de improbidade, se os outros investigados forem protelando o processo, mesmo com confissão, o juiz não poderá fazer nada a não ser arquivar o caso porque não teve fim em quatro anos”, aponta o promotor.
Outro trecho que divide opiniões versa sobre a transformação da lista de atos de improbidade no texto da lei em lista "taxativa" — ou seja, apenas os atos listados são passíveis de punição. De acordo com a lei atual, a lista é considerada exemplificativa; assim, outras condutas também podem ser enquadradas como atos de improbidade.
“Se pensarmos em um policial torturando alguém, hoje, é passível de punição pela lei da Improbidade. Com a mudança, não será mais. Querem deixar um rol fechado de hipóteses de improbidade, como se o legislador pudesse prever todos os comportamentos imorais. Ssso não existe”, aponta Pinheiro. Ele cita ainda casos de perseguição política, que não estão especificados na lista de regras e podem deixar de ser enquadrados como improbidade administrativa.
Veja como foi o debate no Legislativo
O dolo
Entre as mudanças, está uma que determina que atos de agentes públicos só podem ser configurados como improbidade quando houver comprovação de dolo. Atualmente, a legislação caracteriza improbidade administrativa como “qualquer ação ou omissão, dolosa ou culposa, que cause lesão ao erário, que enseje perda patrimonial, desvio, apropriação, malbaratamento ou dilapidação dos bens ou haveres”.
A proposta também é mal vista pelo promotor de Justiça. “Eu até acho que algumas mudanças deveriam acontecer de fato. Os atos de improbidade são, via de regra, dolosos (...) Essa mudança é muito razoável, entretanto, nem mesmo nesse ponto o projeto de lei foi razoável, porque transformou o dolo genérico em dolo específico, sem dar possibilidade do mecanismo probatório”, conclui.
Dois extremos
Para o advogado Igor Rodrigues, vice-presidente da Comissão de Direto Administrativo da Ordem dos Advogados do Brasil - Secção Ceará (OAB-CE), a atual legislação em vigor é “muito punitivista”, mas a nova proposta é “muito liberal”. “Estamos diante de dois extremos. Hoje, pune-se excessivamente, mas a proposta flexibilizou a ponto de chegar ao extremo da impunidade”, avalia o advogado.
Para ele, mesmo trechos da lei em que há um aparente reforço na punição, como o que amplia o prazo máximo de suspensão dos direitos políticos de oito para 14 anos, podem se tornar pouco usados. “Não importa colocar a pena de 14 anos, poderia ser até 100 anos, não adianta se não vai ter como ser aplicada. A própria prescrição intercorrente vai praticamente inviabilizar isso, porque sabemos das dificuldades do Judiciário brasileiro” afirma.
Por outro lado, para o advogado, a legislação vigente é vaga, o que favorece a condenação. “A experiência mostra que o maior motivo de impedimento de candidaturas está relacionado à lei da improbidade, que pode resultar na suspensão dos direitos políticos. Uma pena tão dura como essa não pode continuar como é hoje, sendo aplicada sob regras tão vagas e genéricas. O que deveria era buscar um meio termo, não sair de um extremo para outro”, lamenta.
De olho nos prefeitos
O relator da matéria no Senado, o senador Weverton Rocha (PDT-MA), defendeu o abrandamento das regras. Para ele, o novo modelo traz mais justiça, principalmente, para os prefeitos do País. Ele afirmou que esses gestores muitas vezes sofrem com perseguições judiciais motivadas por disputas políticas locais.
“Às vezes na procuradoria [do município] nem sequer há um concursado. O advogado da campanha virava o procurador e enchia o ex-gestor de ações de improbidade para simplesmente macular ou tentar encurtar a carreira do adversário. Nós temos que fazer essa justiça aos gestores, porque podemos aqui elencar dezenas de casos que nos chegaram e que nos deixam confortáveis em dizer que a legislação precisa, sim, ser melhorada”, disse o parlamentar.
No relatório apresentado no Senado, ele ressaltou ainda que atos culposos não ficarão livres de punição, mas tais atos não serão mais enquadrados nessa lei. “A supressão da modalidade culposa de ato improbidade administrativa não significa que ilícitos culposos deixarão de existir ou que não serão passíveis de punição, mas significa que tais ilícitos serão tratados por diplomas normativos de outras espécies e não pela lei de improbidade”, acrescentou.
Tramitação
A matéria aprovada no Senado agora volta para a Câmara dos Deputados. Isso porque foram incluídos destaques que precisarão da aprovação dos deputados. Caso o texto seja aprovado pelos parlamentares e sancionado pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido), as novas regras passam a vigorar também para casos antigos, já que normas benéficas ao réu possuem eficácia retroativa.
Lei da Improbidade: veja as principais mudanças
Dolo – Os atos de improbidade administrativa passam a depender de condutas dolosas. Foi suprimida a modalidade culposa. Exclui-se a necessidade de dolo específico dos atos de improbidade decorrentes do descumprimento da legislação de acesso à informação.
Nepotismo e promoção pessoal – Inseridos como novos tipos de improbidade o nepotismo (inclusive cruzado) até o terceiro grau para cargos de confiança e a promoção pessoal de agentes públicos em atos, programas, obras, serviços ou campanhas dos órgãos públicos.
Indicação política – Não se configurará improbidade a mera nomeação ou indicação política por parte dos detentores de mandatos eletivos, sendo necessária a aferição de dolo com finalidade ilícita por parte do agente.
Rol taxativo – As condutas consideradas como improbidade são apenas as listadas no texto da lei (hoje, a lista é considerada exemplificativa).
Sanções – Prazo máximo de suspensão dos direitos políticos sobe para 14 anos (hoje o máximo são 8 anos); Valor máximo das multas aplicáveis cai em todos os casos.
Regras de prescrição – A ação para a aplicação das sanções prescreverá em oito anos (prazo único), contados a partir da ocorrência do fato ou, no caso de infrações permanentes, do dia em que cessou a permanência. Antes o prazo era de até cinco anos após o fim do mandato do acusado.
Prazo do inquérito – Aumento do prazo do inquérito para um ano, prorrogável por mais uma única vez.
Ministério Público – O MP passa a ter exclusividade para propor ação de improbidade.
Transição – A partir da publicação da lei, Ministério Público terá um ano para manifestar interesse no prosseguimento de ações em curso. Processos sem essa providência serão extintos.
Sucumbência – Ressaltou-se a condenação em honorários de sucumbência apenas para os casos de comprovada má-fé.
Agentes públicos – São definidos como agentes públicos o político, o servidor público e todos que exerçam, ainda que transitoriamente ou sem remuneração, por eleição, nomeação, designação, contratação, mandato, cargo, emprego ou função nas entidades referidas. As disposições previstas no projeto são aplicáveis também aos que, não sendo agente público, induzam ou concorram dolosamente para a prática de ato de improbidade.
Atos contra princípios da administração pública – Para atos de improbidade administrativa que atentam contra os princípios da administração pública será exigido dano relevante para que sejam passíveis de sanção.