Baú da Política: o futebol feminino já foi proibido no Brasil e a política tem tudo a ver com isso
As jogadoras da seleção brasileira estreiam nesta segunda-feira (24) na Copa do Mundo, apenas 44 anos depois da modalidade deixar de ser proibida no país
O longo caminho percorrido pelas jogadoras da seleção brasileira para chegar a Copa do Mundo vai muito além da distância — de mais de 12 mil quilômetros — entre o Brasil e os países-sede da competição, Austrália e Nova Zelândia.
País da melhor jogadora do mundo, o Brasil foi também aquele em que a modalidade passou quase quatro décadas proibida para mulheres. Foram exatos 38 anos em que o futebol feminino era vetado por decisão presidencial, assinada por Getúlio Vargas, mas mantida pelos presidentes subsequentes.
Para efeito de comparação, a regulamentação ocorreu há apenas 40 anos – quatro anos depois da queda da proibição, em 1979.
O Baú da Política começa a contar essa história de um cenário conhecido — mesmo que a distância — dos torcedores brasileiros: o estádio do Pacaembu, em São Paulo. Hoje casa do Museu do Futebol, o estádio foi palco, em maio de 1940, de um jogo histórico, pouco mais de um mês depois de ser inaugurado.
Antes de um amistoso entre os times masculinos de São Paulo e Flamengo, entraram em campo as jogadoras dos times cariocas Casino do Realengo e S.C. Brasileiro. Esta foi a primeira grande partida de futebol jogada entre times femininos — e a novidade não agradou a todos.
'Disparate esportivo'
Antes mesmo da realização da partida, o jornal Diário da Noite publicou uma carta aberta ao então presidente da República, Getúlio Vargas. Autor de livros sobre normas de conduta social e moral e obras, José Fuzueira alerta Vargas da "calamidade que está prestes a desabar em cima da juventude feminina do Brasil".
O foco da carta é falar sobre a possibilidade de "funestas consequências" para eventual maternidade das jogadoras de futebol. A preocupação do autor seria como o futebol afetaria "a saúde integral" da mulher, visto que "natureza que a dispôs a 'ser mãe'".
O próprio Fuzueira afirma que não sabe os efeitos do esporte para mulheres que desejem ser mães, mas continua a enumerar estes como motivos para impedir a prática no País. "Que V. Ex.ª, Sr. Presidente, acuda e salve essas futuras mães do risco de destruírem a sua preciosa saúde, e ainda a saúde dos futuros filhos delas… e do Brasil", pede o documento.
Na cobertura esportiva, houve reportagens elogiosas à partida — em que o S.C. Brasileiro conquistou a vitória sob o Realengo por 2 a 0. Mas muitos também se uniram à Fuzueira na tentativa de apresentar argumentos científicos para impedir as mulheres de continuarem a jogar futebol.
"O futebol é um esporte violento capaz de alterar o equilíbrio endócrino da mulher", escreveu, por exemplo, um médico chamado Leite de Castro, no jornal curitibano O Dia Esportivo, em junho de 1940.
"Incompatíveis com as condições de sua natureza”
Autora do livro "Mulheres Impedidas: A proibição do futebol feminino na imprensa de São Paulo", a historiadora Giovana Capucim e Silva explica que existia um movimento forte de times de futebol feminino no subúrbio carioca, com mais de 20 equipes. Apesar de virem desse contexto, os times Realengo e S.C. Brasileiro enfrentaram algo novo: a visibilidade.
"Então, começou o debate na imprensa de São Paulo. Um debate forte sobre o futebol feminino, que passava pelo lugar da mulher na sociedade", explica. E se existia um consenso sobre o fato de que mulheres tinham que praticar esporte, restava a dúvida sobre quais modalidades, elas podem praticar.
Existe o próprio contexto político do Estado Novo, regime autoritário sob comando de Getúlio Vargas. "O Estado passa a organizar as relações sociais de uma forma que nunca tinha havido antes no Brasil", afirma. E, é nesse cenário, que a cara de José Fuzueira chega ao Ministério de Educação e Saúde e é encaminhada à divisão de Educação Física.
Esse departamento vinha, há vários meses, trabalhando em um documento para organizar os esportes no Brasil. Assim, é publicado o Decreto-Lei nº 3.199, no dia 14 de abril de 1941 — quase um ano depois daquele jogo no Pacaembu. Nele fica criado o Conselho Nacional de Desportos, além de instituir a base de organização dos desportos em todo o país.
E, no artigo 54, vinha estabelecido:
"Às mulheres não se permitirá a prática de desportos incompatíveis com as condições de sua natureza, devendo, para este efeito, o Conselho Nacional de Desportos baixar as necessárias instruções às entidades desportivas do país".
O texto é curto e não cita explicitamente nenhuma modalidade, embora na prática tenha tido efeito de proibir não apenas o futebol, mas lutas e remo, por exemplo. Em 1965, durante a ditadura militar, são detalhados quais os esportes não podem ser praticados por mulheres: "não é permitida a prática de lutas de qualquer natureza, futebol, futebol de salão, futebol de praia, pólo aquático, pólo, rugby, halterofilismo e beisebol".
Clandestinidade e regulamentação
Com 38 anos de duração, o decreto abrange tanto períodos ditatoriais – como o Estado Novo e o regime militar – como governos democráticos. "O modo como esse decreto se deu na prática varia muito", pondera. Ela relembra que, principalmente durante os anos 1940, existia um movimento da própria sociedade de deslegitimar a modalidade, associando o futebol feminino a prostituições e outras práticas consideradas imorais, na época.
Apesar disso, jogos com mulheres em campo continuavam ocorrendo, normalmente em eventos beneficentes ou de inaugurações de obras em cidades menores – "fazia um jogo de futebol feminino e um de palhaços", detalha. "Eram desprovidos do caráter esportivo. Um dos episódios citados por ela é de uma partida de futebol realizada também no Pacaembu, em 1959.
De um lado, vedetes paulistas e, do outro, vedetes cariocas. Foi o empresário Lover Ibaixe que patrocinou o confronto entre as atrizes de teatro revista. Tentaram impedir a realização da partida por meios judiciais, mas o "espetáculo" – maneira como foi chamado – ocorreu, e exatamente por conta desse argumento.
"(Justificaram que) futebol das vedetes é um show, uma atividade circense. Não era uma atividade de caráter esportivo, de caráter competitivo", relembra Capucim. E, se não tem caráter esportivo, não estaria sob o guarda-chuva do Conselho Nacional de Desportos ou do artigo 54 do Decreto-Lei 3.199.
Mulheres também jogavam "em locais que não tem muita visibilidade, portanto não tem repressão", completa a historiadora. A partir do momento em que aquelas jogadoras começavam a ganhar algum destaque, as autoridades intervinham. Apesar disso, poucas mulheres foram presas por jogar futebol. Normalmente, elas eram, no máximo, detidas e enviadas para a casa da família — esta uma das maiores aliadas em manter as mulheres longes dos campos.
"As leis se relacionam com a cultura. Se a sociedade não concorda com uma lei, ela não vai existir, não vai ser cumprida, não vai virar prática. (Nesse caso) tem a lei, mas tem resistência das famílias a que essas meninas joguem".
A proibição só viria a cair em 1979, o que pouco altera a realidade do futebol feminino no País. "Não é que é proibido, mas não é pode", resume Capucim. Isto porque o artigo 54 é revogado, passando a ser autorizadas a prática por mulheres de esportes que sejam reconhecidos internacionalmente — o que não era o caso do futebol feminino.
Portanto, as mulheres continuam impedidas, por exemplo, de protagonizarem partidas nos estádios brasileiros. A regulamentação só chegaria, enfim, em 1983. No mesmo ano, foi realizada a Taça do Brasil, torneio nacional. E em 1991, as jogadoras da seleção brasileira iam, pela primeira vez, para a Copa do Mundo.
Como isso impacta o futebol feminino hoje?
"Um hiato de 40 anos", é assim que Giovana Capucim e Silva se refere ao período em que o futebol feminino ficou proibido no Brasil — e os impactos disso para a modalidade atualmente. "Muitas coisas poderiam ter sido feitas para ser compensado (o hiato). São mais de 30 anos que (o futebol feminino) foi regulamentado, mas não deu muitos passos", completa.
O Campeonato Brasileiro, nos moldes que é disputado hoje, surgiu apenas há dez anos, em 2013. Também foi apenas em 2019, que a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) passou a impor exigências quanto à construção de equipes profissionais femininas.
Naquele ano, a Confederação estabeleceu que todos os clubes da série A do Campeonato Brasileiro masculino são obrigados pela CBF a terem uma equipe feminina adulta e uma de base, que disputem ao menos um campeonato oficial.
Na Copa do Mundo de 2023 é a primeira vez que o governo federal brasileiro concede ponto facultativo nos dias de jogos do Brasil — a medida é adotada há anos para a competição masculina. No Ceará, o governo estadual também adotou o ponto facultativo.
Mas ainda há um longo caminho. "A gente tem muitas perdas que passam pela nossa cultura e que passam por uma cultura que negou e ainda nega o futebol para as mulheres. A gente ainda tem muito rescaldo disso na cultura e isso é que o mais prejudica", diz Giovana Capucim e Silva.