A renda que tece o tempo: o fio do feito à mão que sustenta a identidade brasileira
Escrito por
Thaty Rabello
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Legenda:
Thaty Rabello é empresária
A renda é mais do que um tecido: é uma escritura em fio, herança de gestos e paciência que atravessa séculos. Surgiu na Europa do século XV, em Flandres, Itália e França, criada por mulheres que, com agulhas e bilros, desenhavam delicadezas no ar. Veio ao Brasil pelas mãos portuguesas e encontrou, especialmente no Nordeste, o seu verdadeiro território de alma.
Com a Revolução Industrial, as rendas produzidas por máquinas abalaram o valor do trabalho artesanal, mas a renda manual resistiu como símbolo de pertencimento. Aqui, a renda deixou de ser símbolo aristocrático e tornou-se expressão popular, feita por mulheres que, entre o som do mar e o vento das vilas, reinventaram a técnica, no Ceará, em Alagoas, na Paraíba e em tantas outras regiões, ela ganhou corpo e ritmo próprios.
Entre as mais emblemáticas está a renda de bilro, tecida sobre almofadas com dezenas de bilros que se cruzam num compasso hipnótico. O som dos bilros é música e memória: a sinfonia das mãos de tantas rendeiras que transformaram e ainda transformam o ofício em legado, cada peça é um mapa de resistência feminina.
Segundo estudos da Central de Artesanato do Ceará (CEART), na tipologia “renda de bilro” há cerca de 700 artesãos cadastrados, sendo 99,4% mulheres. Em âmbito nacional, o artesanato movimenta cerca de R$100 bilhões por ano, correspondendo a 3% do PIB brasileiro e envolvendo aproximadamente 8,5 milhões de artesãos. Números que revelam a dimensão econômica e cultural do feito à mão e também o risco de sua perda.
A tradição, antes passada de mãe para filha, hoje se esvai diante da pressa digital e da ausência de políticas públicas que assegurem sua continuidade. Sem incentivos à formação de novas rendeiras e reconhecimento institucional das mestras artesãs, o fio que sustenta essa arte corre o risco de se romper e com ele, parte da memória e da identidade do país.
Preservar a renda é sobre proteger um patrimônio vivo, costurado pelas mãos do Nordeste. É reconhecer que cada ponto, cada fio, é riqueza, aqui, o feito à mão é mais do que ofício: é identidade, é orgulho, é pertencimento. O Brasil se reconhece nesse bordado coletivo, e é das mãos nordestinas que o futuro continua a ser tecido.
Thaty Rabello é empresária