'Vivo normal, mas com o preconceito das pessoas': o cotidiano de cearenses com doenças raras
Rotina de quem vive com acromegalia, amiotrofia e mucopolissacaridose, por exemplo, é muito mais comum do que diagnósticos raros
Fazer compras no supermercado, ajudar a mãe nos afazeres domésticos, passear na casa da irmã, viajar. Quando questionada sobre as atividades do dia a dia, Lurdete Nascimento, 45, lista a rotina mais comum possível – que muita gente, sob o manto do preconceito, não consegue imaginar que ela pode viver.
Isso porque a cearense é uma das cerca de 400 milhões de pessoas em todo o mundo diagnosticadas com doenças raras, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS).
Um diagnóstico é considerado raro quando afeta, no máximo, 65 a cada 100 mil pessoas em uma localidade, conforme a OMS.
Lurdete é atravessada pelos efeitos de duas doenças raras com que convive: a acromegalia e a displasia fibrosa óssea, ambas diagnosticadas de forma tardia, após peregrinação entre diversos médicos, desde a infância.
“Sentia dor de cabeça e nas pernas, ainda criança, e os médicos mandavam procurar oculista, passavam analgésicos. Quando percebi alterações no meu rosto, um deles chegou a dizer que eu tava apaixonada, vendo coisas. Nunca vou esquecer dele”, relembra.
Sem diagnóstico, ela cresceu, estudou, trabalhou e “deixou pra lá, vida normal, porque diziam que não era nada”. Já adulta, porém, devido à diabetes, descobriu as patologias raras com que já lidava há anos, sem saber.
O tratamento é diário, garantido por liminar judicial, já que é feito à base de dois medicamentos de alto custo. Por mês, se não tivesse conseguido o direito após anos de luta na Justiça, Lurdete precisaria de R$ 20 mil para se manter viva.
Vivo minha vida normal, mas sob preconceito das pessoas. Trabalhei 20 anos em supermercado, admirada por uns e ignorada por outros. Mas nunca me escondi atrás das portas: trabalhava na frente, ao lado da gerência. Isso me ajudou muito.
Hoje, a cearense está aposentada e é vice-presidente da Associação de Amigos e Portadores de Acromegalia e Doenças Neuroendócrinas do Ceará (Apadon), onde inspira muitos amigos “a não desistirem do tratamento nem da vida”.
“Às vezes, eu sinto que eu dou vida a outras pessoas, sabe? Muitos amigos meus querem desistir do tratamento. Mas se a gente tem um tratamento e lutou tanto pela medicação, a gente vai desistir por quê? Vamos continuar vivendo, com o maior desejo de sorrir”, sentencia.
O “desejo de sorrir”, aliás, é o maior sonho de Lurdete. Devido às alterações na estrutura dentária, causadas pela displasia, ela tem dificuldades de expressar, fisicamente, a felicidade e a leveza que faz questão de declarar que sente.
As pessoas costumam rotular a gente pelo que vêem, sem saber da nossa essência. Eu sou feliz, sim. Sou feliz por viver. Com tantos obstáculos que eu enfrento pela vida, tenho coragem, vontade de seguir, de ajudar o próximo – e de sorrir.
“Sou feliz me aceitando como sou”
Sorrir e levar alegria ao outro, aliás, são as premissas dos dias de Daniella Oliveira, 31, que reveza a rotina entre as atividades como professora de reforço escolar e TikToker, rede social na qual já soma mais de 236 mil seguidores e quase 930 mil curtidas em vídeos.
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Daniella é diagnosticada, desde os 3 anos de idade, com mucopolissacaridose (MPS) tipo IV, doença genética que compromete o crescimento e o metabolismo. A condição é tão rara que tem uma média de apenas dois casos novos por ano no Ceará.
Além do calendário semanal de consultas e sessões de fisioterapia, Dani, como gosta de ser chamada, precisa tomar medicação de alto custo no Hospital Geral de Fortaleza (HGF), à qual só passou a ter acesso em 2015, após liminar judicial.
Apesar dos cuidados especiais com a saúde, ela faz questão de dizer: leva uma vida normal desde criança. “Ia pra escolar normalmente, nunca tive problema. Tinha muitas amizades, mesmo sendo muito tímida. Eu nem abria a boca, hoje sou totalmente diferente”, brinca.
@danioliiveira_ Quintouu !! Dia de fisioterapia 💜 ##mps ##fisio ##fisioterapia ##semsentimento ##dancinha ##tiktokbrasil
♬ som original - Daniella Oliveira
Pessoalmente, na escola ou na família, Daniella afirma nunca ter vivenciado preconceito – no tóxico ambiente virtual, por outro lado, os comentários negativos nos vídeos de dança se acumulam, ignorados solenemente por ela.
Posto uma foto ou vídeo arrumada e chamam de cabeção, comentam coisas ruins. Eu nem olho! Uma mulher já disse que eu nunca poderia dar netos à minha mãe. Mas eu já dei foi seis – meus seis gatos que a gente ama.
O bom humor e a leveza, ela explica, têm um ingrediente fundamental: a autoaceitação. “Qualquer pessoa, independente de ter uma doença rara ou não, tem o direito de se divertir, de fazer o que gosta e se sente bem. É isso o que nos dá ânimo pra seguir em frente, se aceitar e se amar como é”, finaliza.
“Meu sonho é fazer ginástica olímpica”
Do desgosto por matemática ao amor por ver vídeos no Youtube, a vida de Julia Dantas, 9, também segue “o mais próximo do normal possível”, como garante a mãe, Jeovanna Dantas. Diagnosticada com amiotrofia muscular espinhal (AME) tipo 2, a pequena foi uma das primeiras cearenses a conseguir na Justiça acesso a tratamento milionário para a AME.
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Depois que começou a tomar a medicação de alto custo, a vida “girou 360 graus”, segundo a mãe de Julia. “Ela é outra criança depois desse tratamento. Não precisa mais usar o respirador pra dormir, passou 2 anos sem gripar. Uma das maiores felicidades dela foi encher um balão”, relembra a mãe.
Durante a entrevista com a dupla, feita por videochamada, a repórter poderia ter aprendido todas as coreografias de TikTok, decoradas e reproduzidas ininterruptamente por Julia. “Depois da aula e das tarefas, fico no celular, vendo vídeos, aprendendo as danças. É o que mais gosto”, diz a pequena.
Neste ano, após a retomada das aulas presenciais na rede privada, Julia teve a experiência completa do ambiente escolar, já que antes mesmo da pandemia recebia aulas domiciliares, devido a questões de saúde.
Tava ansiosa pra voltar pra escola, acordo antes do sol nascer. Lá eu brinco de pega-pega, conheço os colegas, interajo mais. É mais animado.
Para os sonhos que projeta, uma coisa é certa: quer distância de matemática. “Meu sonho é fazer ginástica olímpica e, quando crescer, quero ser veterinária ou procuradora da República, porque não tem que saber muita matemática”, e sorri, com olhos miúdos que enxergam o mundo de possibilidades adiante.