Tempo de (des)aprender

Tempo de dor e de superação. Tempo de reaprender a ser humano e valorizar as pequenas coisas. Tempo de doar, alimentos e afagos

Escrito por
Eulália Camurça eulalia.camurca@svm.com.br

Temos vivido dias surreais, superlativos, insolentes. Tempos de muita dor. Dor em ver pessoas queridas adoecerem e partirem. Tempos de ver o efeito de outra terrível pandemia: a desigualdade social. As crianças seguindo nos sinais dos cruzamentos de Fortaleza com seus malabares e caixinhas pedindo colaborações "ao artista" de rua. As famílias se contaminando porque seguem vivendo em lugares insalubres, sem saneamento e sem o mínimo existencial. As despedidas sem adeus, o conforto sem abraço.

Mas há um tanto de beleza também. A solidariedade das pessoas que se multiplicam para alimentar, acolher, aquecer, adotar. Tem vizinho que toca Ave Maria na hora do ângelus. Independente do credo, traz um convite para o recolher e o pontuar: mais um dia passou. Tem os amigos que aparecem em ligações, em vídeo, em delivery de afeto em forma de flores e doces, na partilha de versos em poesia. Afago.

A relação com o mundo nunca foi tão imaterial e impalpável. Os desejos ficaram latentes, as vitrines desabitadas, as agendas de viagens suspensas. Tudo em conexão para outras paragens. O único legado foi o jet lag coletivo. Uma sensação de tempo elástico, de repetição. O hoje é igual ao anteontem e, se tudo correr bem, igual ao depois de amanhã. O agora é o dever ser.

Daí, os sonhos se perderam nas conexões do mundo e restaram os retratos dele em ruas vazias. Então, um fenômeno muito interessante aconteceu. Champs Elisee, Times Square, Praça de São Marcos desabitadas, como em filmes de ficção científica, nunca foram verdades tão factuais. Enquanto as pessoas seguiam confinadas, a natureza explodia em exuberância. Nos céus, ressurgiram revoadas; nos canais de Veneza, medusas voltaram a nadar.

Pois, quem imaginou que seríamos impedidos de ver o mar? Aí é buscar formas de acalentar. Em Fortaleza, saber que ele continua quebrando nas pedras da Praia de Iracema e que os pássaros seguem livres no Cocó faz o coração acalmar. Sim, a vida pulsa lá fora. E, da janela, as cores ficam mais potentes.

Se não dá para ver o mar, o jeito é se apegar às nuvens e retomar as brincadeiras de criança. Ver nelas as borbulhas da onda avançando na areia. Resta também se impressionar com as cores do sol ardendo ao final da tarde, os lilases se fundindo ao azul. Profusões de manifestações do olhar.

E nestes tempos, a arte nunca foi tão necessária. Até porque, como dizia Gullar: ela existe porque a vida jamais vai bastar. Se não podemos ir assistir a um filme no Dragão ou aos espetáculos nas salas da Caixa Cultural, do Cineteatro São Luiz, dá para fazer uma visita ao museu do Prado vazio pela manhã e contar a generosidade das vozes de Vanessa da Mata, de Marcelo Camelo, de Tereza Cristina, de Mayra Andrade que emprestaram o canto para embalar o banzo, ao vivo, pela internet. Dentro de casa, um encontro com Adélia Prado e suas pequenas luzes esplêndidas, Manoel de Barros e suas insignificâncias.

A quarentena parece ter vindo também para dar diversas lições à nossa boçalidade. Se a humanidade se achava muito sabida, se viu fragilizada diante de um organismo microscópico. Os filósofos anunciavam que jamais um vírus nos assolaria, pois então aconteceu. E nem todo saber dos laboratórios nos deram socorro em forma de vacina ainda.

Em meio a tudo, uma questão parece indiscutível: retomar velhos hábitos seguirá sendo incompatível com o novo contemporâneo. Se o fenômeno invisível faz efeito insólito em todo o planeta, nos resta seguir em vigor, em solidariedade, em imaterialidade. Tentar fazer todo o vivido uma força de transformação. Cabe a cada um ressignificar a si e coletivamente. Daí nos resta descobrir o que fazer diante de dores e descobertas e, se possível, nutrir sentimentos esperançosos. Ou não, mas espero que sim!

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