"Solidariedade do povo cearense salva vida em outros estados"

O Ceará é referência em transplantes e tanto acolhe pacientes de outros estados como também manda órgão para outras regiões do país

Escrito por Thatiany Nascimento , thatiany.nascimento@diariodonordeste.com.br
Legenda: A médica Eliana Barbosa está há mais de dez anos à frente da Central de Transplantes do Ceará
Foto: FOTO: FABIANE DE PAULA

Dos primeiros transplantes renais ocorridos ainda no fim da década de 1970 até a efetivação de procedimentos extremamente complexos de captação de diversos órgãos e tecidos na atualidade. Em 2018, o Ceará ficou em 3º no ranking brasileiro de procedimentos efetivos com uma taxa de 26,9 doações por milhão de população (pmp). É o Estado do Nordeste que mais se destaca e tem evoluído de modo sistemático nesse processo que tem ajudado a salvar vidas. No ano passado foram 1.535 transplantes de órgãos e tecidos. Em 2019, até o dia 23 de agosto foram efetivados 757 cirurgias.

Embora a taxa de recusa familiar no Estado ainda seja considerada alta, conforme explica em entrevista ao Sistema Verdes Mares a coordenadora da Central de Transplantes do Ceará, Eliana Barbosa de Almeida, com 36%, ela ainda é menor que a nacional que foi de 43% em 2018. Este cenário, afirma Eliana, tem relação direta com o nível de esclarecimento das famílias e, a partir disso, com a solidariedade, cujos efeitos são benéficos tanto para cearenses como para brasileiros naturais de outros estados. Estes últimos chegam para realização de procedimentos em Fortaleza, vindos, sobretudo, do Norte. Por outro lado também recebem tecidos doados pelas famílias do Ceará. Entre 2016 e 2018, o Estado chegou a enviar córneas para outros 17 estados brasileiros. Os avanços, os déficits, os critérios dos procedimentos são alguns dos temas esclarecidos por Eliana Barbosa.

Você está à frente da Central de Transplantes do Ceará há mais de 10 anos. O que a motivou a se envolver diretamente com essa área específica?

Eu sou médica nefrologista (especialidade médica dedicada ao diagnóstico e tratamento clínico das doenças do sistema urinário) e antes de trabalhar com a doação eu estava do outro lado, com pacientes transplantados, principalmente renais, e fazia ambulatório. Via a angústia daqueles pacientes que necessitavam de transplantes. A esperança que a vida melhorasse através do transplante. Indiretamente eu estava envolvida com a doação. Então, eu fui convidada para esse desafio de coordenar a Central de Transplantes e de imediato eu aceitei porque eu queria contribuir para aumentar as taxas de doação.

Hoje, como se define no Brasil quem é ou não doador? Mesmo que a pessoa deseje em vida, quem toma a decisão é a família?

Hoje não precisa deixar nada por escrito. O importante é você comunicar a sua família que você é uma doador de órgãos. Porque quem vai autorizar são seus familiares de primeiro e segundo grau, cônjuges ou companheiros. É a família que autoriza. Nós temos que manifestar em vida esse nosso desejo para que a família conheça. Porque quando chega aquele momento difícil de perda, de dor, se a família conhece esse seu desejo, ela vai honrá-lo.

Quem são os chamados doadores vivos? Quais órgãos/tecidos podem ser obtidos de um doador vivo?

Nós temos dois tipos de doadores: o vivo e o falecido. O vivo é uma pessoa saudável que concorde em doar um dos seus órgãos, como rins – porque são duplos, parte do fígado e do pulmão. O fígado tem o poder de regenerar. Então, o pedaço de fígado tirado de um doador vivo e implantado em um receptor vai crescer. A doação intervivos de pulmão é um pouco mais complexa, porque acaba favorecendo mais as crianças. Eu tiro um pedaço do pulmão do pai, um pedaço do pulmão da mãe e transplanto em uma criança. E outro é a medula óssea, que não é órgão, é tecido.

É só entre parentes?

A nossa legislação permite a doação intervivos entre parentes de até quarto grau, entre cônjuges, e também entre não parentesco. Mas ainda tem detalhes e procedimentos que devem ser seguidos, como, ter que passar por um comitê de ética do hospital e depois por uma autorização judicial.

O Ceará em alguns momentos já chegou a mandar córneas para outros estados. Como é regulada esse envio de órgãos?

Desde o final de 2017, nós zeramos nossa fila de transplante de córnea. Um paciente que venha a necessitar de um transplante de córnea vai depender mais da sua equipe de transplante para agendar. Com nossa fila zerada – que é um paciente precisar de um transplante e ser prontamente atendido – as nossas doações de córneas continuam boas. Diante de uma fila zerada, a gente distribui córneas para outros estados mostrando que a solidariedade do povo cearense vai salvar vidas em outros estados. Isso a gente disponibiliza para a Central Nacional que funciona em Brasília e essa Central manda os órgãos.

Também recebemos órgãos de outros estados?

A gente também recebe. Em um momento que uma família doa, e aquele órgão não é transplantado naquele estado que houve a doação, nós temos que notificar todo o Estado, notificar a Central Nacional, para que ela, através de critérios técnicos, distribua para outros estados e a gente receba.

No atual cenário de propagação de desinformação há algum efeito disso nessas decisões?

Desde a criação da Central de Transplantes (em 1998) as famílias estão mais esclarecidas com relação à doação. Em alguns momentos, a própria família manifesta o desejo. Mas sem dúvida quanto mais informações, mais esclarecimentos para as pessoas, elas ficam mais solidárias. Elas compreendem melhor e acabam doando.

Qual a maior causa de não efetivação de transplantes no Ceará? E qual o peso das negativas familiares para essa não efetivação?

O processo de doação e transplante é bastante complexo e temos pontos de melhorias, um deles é nós aumentarmos a nossa taxa de notificação de potenciais doadores e aí as ações são voltadas para os profissionais da saúde e em identificar mais rápido esse potencial doador e fazer essa comunicação à família. Temos ainda que trabalhar para diminuir a taxa de negativa familiar. No Brasil é uma taxa alta. No ano passado estava em torno de 43% e embora o Ceará tenha uma taxa menor que a nacional, nossa taxa foi de 36%, é também elevada. A gente tem que trabalhar em esclarecer mais todo esse processo doação transplantes, tirar as dúvidas, porque muito vem da desinformação, do desconhecimento, porque uma vez ela informada e esclarecida, ela é solidária.

Quais as lacunas hoje na Rede de Transplantes e o que ainda precisa de fortalecimento?

O que a gente está trabalhando é a educação permanente. Tanto para a sociedade leiga, como para os profissionais da Saúde. Diferentemente de outras áreas, a educação é primordial no processo de doação de transplante. Uma vez esses profissionais capacitados em identificar, dar o diagnóstico e principalmente comunicar à família é que a gente ver a diferença. A gente investe na educação do processo de doação.

Em qual momento se estabelece esses potenciais doadores?

O modelo organizacional de procura no Brasil nós temos dentro dos nossos grandes hospitais tanto na Capital, como nas regiões Norte, Sul e agora Sertão Central, dispomos de organizações à procura de órgão e as comissões que procuram os potenciais doadores nas unidades hospitalares. Eles não têm nenhum contato com quem espera a doação. Eles vão otimizar todo o processo da doação dentro do hospital, agilizando o diagnóstico e o principal acolhendo as famílias. Se a família diz sim, elas notificam a Central de Transplantes, que registra esse potencial doador.

O Ceará recebe diversos pacientes vindos de outras regiões, como é a garantia de assistência a esses pacientes?

O paciente de outro Estado pode vir fazer o seu transplante em um determinado Estado. Mas, o importante é que ele não pode estar em duas listas. Ele tem que optar qual o estado que ele quer está cadastrado e os estados têm um programa de Tratamento Fora de Domicílio. A partir do momento que o Estado não oferece aquele procedimento, o Estado tem que viabilizar para que esse paciente seja atendido. Então, eles vêm via esse programa. Ele não vem diretamente. Ele vai para uma equipe transplantadora para ser avaliado e se tiver tudo ok ele é cadastrado nessa lista única de espera de transplante.

O custo desse paciente fica a cargo do Estado de origem dele?

Sim, via Tratamento Fora de Casa. Em alguns momentos, alguns paciente por conta própria decidem mudar realmente de Estado, mas existe esse programa do Ministério (da Saúde).

Hoje, recebemos pacientes de onde?

Menos frequente da região Sul, mais do Nordeste e, principalmente, a Região Norte pelo número de transplantes que nós realizamos.

Embora a fila seja dinâmica e siga critérios específicos, qual o tempo de espera nessa fila?

Cada órgão e tecido têm seus critérios de seleção. Todos os órgãos dependem da compatibilidade sanguínea. No caso do fígado, vem por gravidade, o paciente mais grave é avaliado através de uma fórmula matemática. Quanto maior a pontuação mais grave o paciente se encontra, então ele vai estar no topo da lista. No caso do rim, há um critério imunológico. Posso vir a necessitar de um transplante hoje, entrar na fila hoje e amanhã já ser beneficiado. Passando "na frente" de outros pacientes porque meu grau de compatibilidade genética com o doador foi bem maior, a chance de sucesso do meu transplante aumenta. No caso do coração, além do grupo sanguíneo tem o tamanho para estar proporcional. Cada órgão tem seus critérios. O mais importante é que esses critérios não envolvem nenhuma questão social e financeira.

Qual o mais recente tipo de transplante incorporado à Rede do Ceará?

Creio que foi o transplante de medula alogênico não aparentado, que é de outra pessoa que não é seu familiar. Vem a medula e faz o procedimento aqui (procedimento foi realizado em abril de 2016).

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Ações
Ao longo do mês de setembro, a doação de órgãos será tema das produções do Sistema Verdes Mares nas inúmeras plataformas. O assunto, desde 2003, também norteia a Campanha Doe de Coração, que este ano chega à sua 17ª edição. 

Informação
A Doe de Coração é realizada anualmente pela Fundação Edson Queiroz e conta com apoio de diversos órgãos e entidades públicas da saúde e de empresas de vários segmentos econômicos. A campanha busca informar e encorajar a população para ampliar o número de doadores.

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