Por mês, 56 denúncias de violação contra idoso viram ações judiciais

Múltiplas formas de violência, negligência e exploração financeira lideram casos nas promotorias de defesa do idoso do Ministério Público do Ceará. Estatuto é considerado "completo", mas prática dos direitos não é garantida

Escrito por Theyse Viana , theyse.viana@svm.com.br
Legenda: Casa de Nazaré é uma das instituições filantrópicas que abrigam idosas em Fortaleza
Foto: FOTO: FABIANE DE PAULA

Bate solidão no peito de Josefa (a reportagem optou por usar nome fictício para preservar a identidade da idosa). Dos 89 anos vividos até aqui, os últimos quatro meses têm sido os mais tristes, desde que ingressou na Casa de Nazaré, instituição filantrópica de Fortaleza que acolhe, hoje, 42 idosas - muitas vulneráveis, encaminhadas pelo Ministério Público do Ceará (MPCE). Entre 2018 e o ano passado, 1.269 denúncias por violação dos direitos do idoso foram instauradas junto ao órgão. Todas viraram ações judiciais.

Só em 2019, foram 672 ações sobre violências múltiplas, negligência, exploração financeira e maus-tratos, as mais registradas no Estado. O número de processos no MPCE em 2019 inteiro ainda é menor do que o total de denúncias recebidas em apenas seis meses pelo Disque 100: foram 838, de janeiro a junho. Os dados até dezembro ainda não foram consolidados.

No caminho até a institucionalização, Josefa poderia ter integrado as estatísticas, após sofrer abuso psicológico de uma das filhas. Hoje, ela tem a rede de dormir e as outras idosas da casa de repouso como companhia, entre as visitas da família e a memória cada vez mais raras. "Meu lugar é no Antônio Bezerra, lá tenho vizinhos como irmãos. Morei a vida toda sozinha, mas tinha eles e era feliz. Aí tive que me mudar. Hoje, tô aqui. Eu me sinto um troço, me sinto nada", desabafa.

No Ceará, em 2043, idosos já serão mais numerosos do que a faixa etária de 0 a 14 anos, estima o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). O envelhecimento da população e o crescente abandono afetivo de idosos motivaram, no último dia 14, uma ideia polêmica no Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos: o início de um estudo sobre "adoção" de idosos. O intuito, segundo a Pasta, é "encontrar um caminho em conformidade com a lei para subsidiar a prática de acolhimento". O artigo 37 do Estatuto do Idoso (Lei nº 10.741/2003) garante ao idoso "o direito à moradia digna, no seio da família natural ou substituta".

Para Raphael Castelo Branco, presidente da Comissão dos Direitos da Pessoa Idosa (CDPI) da OAB Ceará e do Conselho Estadual do Idoso, a possibilidade é "preocupante" e não é amparada pelo Direito brasileiro. "O ramo da gerontologia aponta que institucionalizar o idoso em adoção seria infantilizá-lo, não considerar a autonomia dele, afora outras questões. Como ficaria o direito da personalidade? Em óbito desse idoso, a família biológica passa a perder os direitos hereditários? E a exposição do idoso a outras violências, quem vai fiscalizar?", questiona, apostando em "programas de apadrinhamento" como soluções mais viáveis.

Idosos cearenses sem dinheiro, família ou condições de permanecer nela têm apenas uma opção pública: o Abrigo Olavo Bilac, mantido em Fortaleza pela Secretaria de Proteção Social, Justiça, Cidadania, Mulheres e Direitos Humanos (SPS). A Instituição é alvo, desde 2013, de recomendações de reformas pelo MPCE, "todas atendidas até 2018", conforme a SPS. Na última vistoria do MP, em março de 2019, porém, o alvará de funcionamento e a licença sanitária do local estavam vencidos.

Fiscalização

O relatório da fiscalização, obtido pelo Diário do Nordeste, descreve "quartos e corredores com odor de urina, piscina suja (porém tratada), colchões em péssimo estado de conservação, estrados mofados e ventiladores sujos e insuficientes". No mês da visita, 73 das 80 vagas estavam ocupadas, 60 delas por idosos em situação de abandono. Hoje, são 72 acolhidos, diz a SPS, informando ainda que há "outro abrigo em fase de implantação no município de Brejo Santo, na Região do Cariri, orçado em R$ 12,5 milhões".

A demanda por Instituições de Longa Permanência para Idosos (ILPIs) no interior "é muito grande", segundo Raphael, e muitas são abertas de forma clandestina, "sem respeitar normas técnicas e expondo idosos a violações". "Quando o poder público não é efetivo, acaba propiciando isso. Todas as instituições têm filas de espera enormes. E o abrigo estadual parece estar em reforma constante", critica o presidente da CDPI.

Nesse cenário, a sobrecarga fica para locais como a Casa de Nazaré, como avalia a assistente social Camila Mesquita. "Fazemos um trabalho que é pra ser de Prefeitura e Estado, apesar de não recebermos ajuda deles. Necessitamos do apoio das políticas públicas, porque trabalhamos com parcerias com instituições de ensino", pontua, frisando o direito à saúde como o mais difícil de ser acessado plenamente. "90% das idosas daqui dependem do SUS. Quando uma não é bem atendida de forma medicamentosa, isso influencia em toda a vivência", destaca.

As 42 idosas, de 62 a 98 anos, recebem apenas uma visita mensal da "médica do posto" de saúde. De acordo com Gerides Moraes, assessora técnica da Célula de Atenção à Saúde do Idoso da Secretaria Municipal de Saúde (SMS), 15 ILPIs são atendidas nesse regime. "Temos responsabilidade sanitária pelo território, mas não temos obrigação de na hora que elas adoecerem ter médico lá. Em um evento agudo, a Instituição deve levar a pessoa idosa até a unidade básica, terá total prioridade", aponta.

Gerides afirma ainda que os focos são a prevenção e a garantia de um "envelhecimento ativo". "Temos as pessoas idosas ativas, 75% dessa população; as vulneráveis, que somam uns 20%; e as dependentes, os 5% que estão acamados ou em instituições. Fazemos visitas domiciliares para buscar as vulneráveis antes que se tornem dependentes, rastreando os riscos de queda, depressão e déficit cognitivo, e encaminhar os idosos a serviços específicos".

Outra iniciativa municipal é o Centro-Dia de Referência para Pessoas Idosas, na Barra do Ceará, que oferta atendimento e atividades para idosos em vulnerabilidade socioeconômica. Solicitamos à Secretaria de Direitos Humanos e Desenvolvimento Social (SDHDS), responsável pelas políticas de assistência em Fortaleza, desde a última quarta-feira (15), um detalhamento das ações e de como os recursos do Fundo Municipal dos Direitos da Pessoa Idosa são aplicados em medidas semelhantes, mas a Pasta não respondeu até o fechamento desta edição.

As ausências de respostas e de políticas públicas efetivas perseguem realidades como a de Maria das Mercedes Teles, 86, de criança a idosa. É num lar compartilhado, na Casa de Nazaré, onde ela investe a aposentadoria mínima que ganha para encontrar um lugar no mundo, depois de "uma vida inteira nas casas dos outros". Com leveza surpreendente na fala e no sorriso, ela relembra, sem rancores, de quando foi abandonada pelos pais, ainda criança; dos espancamentos que sofreu e dos alentos que vieram por meio dos "netos do coração", que ajudou a criar por amor e como forma de sustento.

Hoje, sem força de trabalho, segue sem vínculos firmes com as famílias pelas quais passou. "Deus sabe do que foi a minha vida, mas hoje eu tô feliz. Tô em paz, no meu canto, me dou muito bem com todo mundo aqui. E meus netos vêm me visitar! Mas sem poder fazer mais nada, ajudar nas casas, ariar uma panela nem cozinhar, por causa da minha saúde, o jeito é viver em casa de repouso, mesmo".