Pesquisa revela predomínio de violência psicológica contra mulheres

Estudo da Defensoria Pública do Ceará aponta que 98% das vítimas atendidas no Núcleo de Enfrentamento à Violência contra a Mulher, em 2019, sofreram abuso psicológico. Muitas demoram a identificar a situação de violação

Escrito por Barbara Câmara , barbara.camara@svm.com.br

Ao invés do carinho, a ofensa; no lugar do apoio, a humilhação. A subversão dos valores de um relacionamento saudável marca a violência psicológica contra a mulher, tipo de agressão que se destaca em uma pesquisa realizada pelo Núcleo de Enfrentamento à Violência contra a Mulher (Nudem) da Defensoria Pública-Geral, em Fortaleza, com 573 mulheres atendidas no local no ano passado.

De janeiro a novembro de 2019, o Núcleo atendeu 7.820 mulheres. Dessas, 573 aceitaram participar do levantamento que, dentre outras informações, identifica quais situações de violência foram vivenciadas pelas vítimas. Do total de entrevistadas, 562 afirmaram ter sofrido violência psicológica. O número representa aproximadamente 98,08% das participantes.

O estudo contabilizou as cinco formas de expressão da violência previstas na Lei Maria da Penha (11.340/2016), que inclui a psicológica, física, sexual, moral e patrimonial. O segundo tipo de agressão mais frequente entre as participantes do estudo foi a física, relatada por 414 mulheres.

A violência psicológica é bem mais frequente que a física, conforme explica a defensora pública Jeritza Braga, supervisora do Nudem. "A maior parte dessas vítimas de agressão física também sofre violência psicológica, mas não percebe. Só quando estão no atendimento, em que a psicóloga ou assistente social pergunta se ela sofre algum tipo de ameaça, se foi humilhada ou teve seus hábitos controlados, aí elas vão percebendo o que sofreram", relata.

Enquanto é submetida à agressão, a vítima acaba naturalizando o comportamento, muitas vezes, por aspectos culturais, já tendo presenciado situação similares entre pai e mãe, ou em gerações anteriores da própria família.

"A gente vive em uma cultura muito machista, e o nosso Estado tem isso muito enraizado. Muitas dessas mulheres não têm a noção de que vivem em uma situação de violação. Elas pensam que o marido é ciumento, tem temperamento forte", descreve a psicóloga Andreya Arruda, coordenadora do setor psicossocial da Defensoria Pública.

Ela avalia que é necessário trabalhar amplamente a educação em direitos, além de promover a conscientização em escolas, para que o problema possa ser identificado o quanto antes. "É preciso reconhecer que não é normal, é uma situação de violência. As mulheres têm dificuldade de reconhecer uma agressão que não é a física".

Ameaças

Os hematomas deixados na pele já se foram, mas as cicatrizes se perpetuam em cada pensamento de Samantha (nome fictício), uma das mulheres atendidas pelo Nudem, que terá a identidade preservada. Para ela, o relacionamento que começou aos 24 anos de idade veio como uma mudança positiva em sua vida. Ou aparentava ser.

"Ele veio devagar. Ajudou com o tratamento de saúde da minha mãe, me fez parar de beber, me ajudou a emagrecer. Ao mesmo tempo, ele 'tava' me manipulando sem eu perceber. Por ter feito tantas coisas boas por mim, ele me dava a impressão de que eu devia a ele", conta. Ainda nos primeiros anos de namoro, Samantha foi vítima de agressão física. O abuso psicológico, porém, acompanhou todo o período de contato entre os dois, variando entre palavras depreciativas e até ameaças.

"Ele dizia que ia pisar na minha cabeça. Falava que ia me machucar, marcar meu rosto pra eu lembrar sempre que olhasse no espelho. Dizia que ia quebrar meus dentes dando um tiro na minha boca", conta. Ela foi chamada de incompetente e chegou a duvidar do amor da própria família, sob influência do agressor.

"A manipulação e a pressão psicológica eram tão grandes que eu pensava que o que eu sofria era pra pagar algo que eu tinha feito", lamenta. Hoje, aos 31 anos, Samantha tem uma medida protetiva contra o homem, que é monitorado por tornozeleira eletrônica. Após ser agredida novamente dentro de uma delegacia, ela decidiu procurar a Defensoria Pública. "Eu conversei, tiraram minhas dúvidas. Me deram suporte. Eu cheguei lá muito nervosa, e saí mais tranquila", afirma. Mas o trauma e o medo permanecem.

Apoio

É na Casa da Mulher Brasileira, equipamento localizado no bairro Couto Fernandes que abriga, além da Defensoria, a Delegacia da Mulher e demais serviços de proteção, que as vítimas de violência dão o primeiro passo em direção ao amparo. De acordo com Jeritza Braga, as mulheres chegam à unidade em busca da delegacia, para registrar um Boletim de Ocorrência. Nesses casos, são encaminhadas para a Defensoria Pública.

"Quando querem resolver a situação jurídica, se divorciar ou pedir pensão alimentícia, elas vão direto para a Defensoria. Chegando lá, são atendidas pelos defensores públicos e pela equipe multidisciplinar, que inclui psicólogas e assistentes sociais", detalha. O defensor colhe o máximo de informações para auxiliar a mulher juridicamente, e acaba sabendo de casos de violência. Com a equipe multidisciplinar, esse assunto passa a ser aprofundado.

A partir de então, a mulher é encaminhada para uma clínica de psicologia - que tenha convênio com a Defensoria Pública - para fazer um acompanhamento, principalmente quando a psicóloga percebe a situação de vulnerabilidade.

"Ela também pode ser encaminhada para a Célula de Autonomia Econômica e Financeira, da Casa da Mulher Brasileira. Lá, as mulheres podem ser incluídas em cursos gratuitos para ingressar no mercado de trabalho, de acordo com a aptidão que elas tenham", destaca Jeritza.

Justiça

"Elas também podem ser encaminhadas para o Centro de Referência de Assistência Social (Cras), ou para o Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas)", explica a supervisora.

Jeritza acrescenta que crimes como difamação, injúria e calúnia, comuns em casos de violência psicológica, são de natureza jurídica privada, e, nesses casos, a Defensoria pode dar entrada na Justiça com a queixa-crime.

"Outros crimes, como lesão corporal, têm natureza jurídica de ação penal cívica, condicionada a representação. Esses crimes são de competência do Ministério Público, que faz a petição inicial do processo e a denúncia". Nessas situações, a Defensoria Pública encaminha a vítima para o Ministério Público e explica onde ela deve ir e quais são os prazos a serem cumpridos.

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