O que mudou no tratamento da Covid-19 no Ceará até aqui
Cuidados com pacientes vêm junto a mudanças de protocolo, descobertas científicas e incertezas diárias; médico infectologista, enfermeira e fisioterapeuta apontam como aprendizados influenciaram nos procedimentos
A chegada repentina da pandemia da Covid-19 no Ceará abalou não apenas a rotina de gentes, comércios e serviços, mas, principalmente, a dos profissionais de saúde. Com o ingresso incessante e cada vez mais volumoso de pacientes infectados com o novo vírus nas unidades hospitalares, médicos, enfermeiros, fisioterapeutas e outros profissionais precisaram "aprender fazendo" - salvar vidas em meio a mudanças constantes de protocolos, descobertas científicas e incertezas diárias.
"Foi muito difícil, porque saía hoje um estudo, amanhã outro, e isso gerava insegurança na gente. O que eles descobriam combinava com o que víamos na prática, mas tinha muita divergência também. Fomos confrontando estudos com o que vemos nos pacientes, porque ainda não há respostas sobre o melhor medicamento, terapia ou ação". A fala é do infectologista Lino Alexandre, que atua no Hospital Leonardo Da Vinci, unidade estadual referência no tratamento da Covid-19 no Ceará.
No pico da pandemia em Fortaleza, em maio, o Estado chegou a ter 2.243 pacientes internados simultaneamente, 772 deles em Unidades de Terapia Intensiva (UTI) e outros 1.471 em enfermarias. Até o último sábado (29), o número registrado no Integra SUS, da Secretaria da Saúde (Sesa), era quase a metade: 735 pessoas com Covid-19 estavam em unidades hospitalares em todo o Estado, 310 delas em UTIs e 425 em leitos de menor complexidade.
Hoje, cinco meses e meio após a confirmação dos primeiros casos no Estado, os medicamentos prescritos mudaram, o rigor nos critérios para intubação aumentou e a necessidade de se ter uma equipe multidisciplinar para observar as diversas manifestações do novo coronavírus nos pacientes foi reforçada. Salvar as vidas afetadas pelo Sars-CoV-2, então, está dia a dia mais possível.
Qualificação
Lino Alexandre ressalta que "o atendimento foi qualificado desde o início", mas reconhece que a experiência em torno da doença garantiu cuidados mais precisos. "Os procedimentos mudaram na medida em que novas medicações surgiram ou novos processos terapêuticos se mostraram eficazes, e que íamos compreendendo as manifestações da doença. Aprendemos a manejar melhor o uso do capacete, do cateter de autofluxo e o próprio momento ideal de usar a ventilação mecânica. Isso foi muito importante para garantir uma melhor recuperação para cada caso", analisa o infectologista.
Nancy Costa, chefe de enfermagem do Hospital São José de Doenças Infecciosas (HSJ), complementa: "não resta dúvida de que, com o passar do tempo, todos os profissionais adquirem um manejo melhor da patologia, habilidades maiores, vão conhecendo mais o quadro. O fato de o número de óbitos ter reduzido ao longo da pandemia não significa que no início havia imperícia dos profissionais: claro que isso conta, mas não era determinante". Muitos pacientes, aponta ela, "já chegavam ao hospital com alto grau de comprometimento".
Além de aplicação mais rigorosa da intubação e dos respiradores pulmonares, outra mudança importante foi quanto à medicação recomendada para tratar a Covid-19. Segundo Lino, "o tratamento evoluiu principalmente quando vimos que o corticoide tinha respostas positivas", ponto também citado por Nancy. "No início, a hidroxicloroquina era uma febre, e isso foi mudando. Os medicamentos para parasitoses aos poucos também foram saindo da lista de prescrições e administrações. O foco hoje está no uso do corticoide em tempo correto".
Um dos pacientes incluídos no tratamento com cloroquina associada a antibiótico (protocolo adotado pela Secretaria da Saúde do Ceará em abril) foi o maqueiro Francisco Ribeiro da Silva, 41, infectado pelo novo coronavírus em pleno pico da pandemia na Capital e internado no HSJ após manifestar sintomas graves da nova virose. O medicamento deixou como efeito colateral um "formigamento" nos pés por quase um mês.
Quando internado, Ribeiro foi submetido à manobra da "pronação": quando o paciente é deitado de bruços para recuperar a oxigenação do sangue. "Minha saturação tava em 60%, aí recomendaram ficar de barriga pra baixo direto. Não podia mudar de posição. No dia seguinte, chegou a 97%", relembra o maqueiro, depondo que "a dor no corpo era horrível" e que só suportou "porque não queria ser intubado de jeito nenhum". A dificuldade respiratória, porém, dura até hoje, tratada com fisioterapia pulmonar.
Multidisciplinar
O acompanhamento com fisioterapeuta é fundamental não só no pós, mas em todas as etapas do tratamento da Covid-19 - e a importância dos múltiplos profissionais de saúde na observação dos pacientes foi outro ponto evidenciado pela pandemia. "Vimos que era doença respiratória, então precisava de fisioterapeuta. A enfermagem também, que já faz parte do rol da assistência médica. A contribuição de todos para evitar agravos pro paciente fazia com que cada um reforçasse o olhar e tornasse o cuidado coletivo", afirma Lino Alexandre.
A fisioterapeuta Ana Karina Marques, que atua no Hospital Geral de Fortaleza (HGF), reforça que a longa internação exigida pelos casos mais graves do novo coronavírus exigiu vigilância ainda mais complexa. "A cada 24h que o paciente fica internado e não mantém a autonomia normal, ele perde funções. Isso repercute nas dinâmicas muscular, cerebral, renal e cardíaca, por isso o avaliamos da chegada dele até a saída", explica Karine - que trabalha em UTI há 20 anos, mas, diante do ineditismo do novo coronavírus, sentiu necessidade de estudar novamente.
Lições
Além dos cuidados com os pacientes, a importância da autoproteção se destacou na pandemia: utilizar máscara sempre, inclusive em conversas de corredor, e aprender a colocar e tirar a paramentação da forma correta, sem riscos de infecção pelo coronavírus, foi outra lição aprendida e citada pelos três profissionais de saúde ouvidos aqui.
O aprendizado deles, contudo, não foi só científico, mas pessoal, como pontua Dr. Lino.
"A pandemia é muito marcante, porque dá certo grau de impotência, mas ao mesmo tempo um desejo de contribuir pra salvar vidas. Você fica na busca incessante de 'hoje não pode morrer ninguém'. Mas morre. O lado humano entre profissões é muito importante, e a interdisciplinaridade diminui as dores e gera ganho de saberes".
Para Nancy, o desafio diário foi "buscar alternativas para minimizar o sofrimento psicológico dos profissionais". "O profissional vem pra cá com muito medo de levar a doença pra casa. Eles têm as necessidades deles, e como vão prestar atendimento de qualidade se não estiverem bem?", questiona a chefe de enfermagem.
Já Ana Karina assume que a pandemia trouxe "a importância da união de vários olhares sobre um paciente crítico, fazer tudo sozinha não tem um resultado efetivo". Além disso, ela cita uma lição pessoal e, ao mesmo tempo, compartilhada: "capacitação constante é imprescindível para lidar com o novo".