Mesmo após alta, pacientes psiquiátricos seguem internados há mais de um ano no Ceará
Neste 18 de maio, Dia Nacional da Luta Antimanicomial, ao menos 9 pessoas que já tiveram alta continuam hospitalizadas de forma ininterrupta, em Messejana, há mais de um ano
No ambiente de moradia, a cama é um leito, as refeições são preparadas em uma cozinha industrial, poucos pertences são individuais, e a rotina parece um infindável tratamento, mesmo que a alta já tenha sido recebida há anos. Nesse “lar” impróprio não há quarto separado, sala, quintal, tampouco convivência com parentes. As companhias, além dos profissionais da saúde, são desconhecidos que também adentram os portões em busca de tratamento psiquiátrico.
No Ceará, por cerca de 12 anos, foi assim a experiência de morada de uma paciente em Fortaleza. Em junho de 2020, ela deixou o Hospital de Saúde Mental Professor Frota Pinto (HSM), em Messejana. A conta das internações considera também o tempo passado por ela em outras unidades do mesmo perfil.
A nova casa, no caso, teve que ser uma residência terapêutica - casas mantidas pelo poder público (Governo Federal, e geralmente, as prefeituras) que acolhem pessoas com transtornos mentais advindas de longas internações, e que, por motivos diversos, não puderam retomar laços familiares - em Fortaleza.
A situação, embora extrema, não é isolada no Estado. Hoje, dia 18 de maio, Dia Nacional da Luta Antimanicomial, ainda há outras 9 pessoas que, mesmo com alta hospitalar em decorrência dos quadros psiquiátricos, ainda seguem internadas de forma ininterrupta, em Messejana, há mais de um ano. Os tipos de transtornos desses pacientes não foram detalhados pelo hospital.
[Atualização às 14h40, de 18/05/21] O Diário do Norte noticiou anteriormente que 12 pessoas aguardam na unidade, conforme repassado pelo Serviço Social do hospital. A informação correta é 9 pacientes já tiveram alta e seguem na instituição.
Quebra de vínculos familiares, abandono, ausência de identificação sobre a origem dos pacientes, e informações desencontradas são alguns dos obstáculos que fazem com que esses pacientes sigam na instituição mesmo que a internação não seja mais necessária.
No início deste mês, após quase quatro anos no Hospital de Saúde Mental - única emergência psiquiátrica pública do Ceará - um paciente, de 55 anos, retornou ao convívio familiar na cidade de Tururu, no interior do Estado. O hospital deixou de ser “a casa”, após um difícil trabalho de identificação e resgate de vínculos familiares. Foram meses de procura minuciosa. Dentre os gargalos, o fato de o paciente ao precisar de socorro, ter sido internado, há anos, sem documento, e não recordar dos parentes.
A lembrança de um local de trabalho foi o rastro para o desenrolar da procura liderada, desde 2020, por funcionários do hospital, com o apoio da Secretaria da Saúde do Estado (Sesa).
Uma cópia de contrato, o nome completo, o local de nascimento, a certidão no cartório, peças do quebra cabeça que, felizmente, teve como desfecho garantir ao paciente o que lhe é direito: sair do hospital no tempo adequado após a alta, ter um lar e poder conviver com a família e a sociedade.
Além dos percalços da permanência em si e das dificuldades do trabalho para garantir a saída, há um agravante: o estigma na saúde mental. Famílias que protagonizam alguns desses difíceis casos no Ceará, por vergonha e receio, sequer aceitam dar entrevista. Nesta matéria, tentamos contato com parentes de pacientes que passaram pelo hospital, mas não foi possível ouvi-los diretamente.
Situações críticas e delicadas que perduram mesmo após 20 anos de formalização da Lei Federal 10.216/2001, base da Reforma Psiquiátrica no país. No interior dos hospitais, esses impasses misturam aspectos clínicos e assistenciais, mas, sobretudo, evidenciam dramas sociais e humanitários.
Qual a atual situação?
Em Messejana, embora seja motivo de comemoração, a saída dos pacientes mencionados não zerou a fila de internação de longa permanência, conforme a assistente social da Comissão de Desinstitucionalização do Hospital de Messejana, Thanara Pereira.
O número, relata ela, já foi maior. Em novembro de 2019, afirma, a unidade já chegou a ter, ao menos, 19 pessoas em situação de longa permanência.
Nesses casos, explica a assistente social, a média era de 3 a 4 anos de “moradia” no hospital. Em 2020, mesmo em meio à pandemia, alguns conseguiram deixar o local. Uns encontraram parentes, e outros, após muitas batalhas, foram rumo a alguma residência terapêutica.
Outro gargalo é que o número de residências terapêuticas no Estado, há anos, é insuficiente. Ao todo, há apenas 6 casas do tipo no Ceará habilitadas junto ao Ministério da Saúde. Três delas em Fortaleza: na Aldeota, no Álvaro Weyne e no Bom Jardim. A última inauguração de equipamento do tipo na Capital ocorreu há mais de 5 anos.
Conforme a Prefeitura de Fortaleza, cada residência abriga 10 moradores, e tem acompanhamento de uma média de 49 profissionais, entre assistentes administrativos, cuidadores, cozinheiros, zeladores, porteiros, técnicos e auxiliares de enfermagem, e coordenador.
A estimativa do custo para manter as três residências é de R$ 159 mil reais por mês. Desses, o Ministério da Saúde repassa um valor fixo, de 60 mil reais - 20 mil reais para cada unidade - e os outros cerca de 99,2 mil reais são do tesouro municipal. Questionada sobre planos de abertura de um novo equipamento do tipo, o município disse apenas que “já está com um processo em andamento para a implantação de mais uma residência terapêutica.
No Brasil, a chamada Reforma Psiquiátrica, cujas bases são, dentre outras, a extinção dos leitos psiquiátricos em unidades específicas da saúde mental, e a ampliação dos recursos assistenciais no campo da saúde mental, ganhou ênfase na década de 1990. No Ceará, em 1993, a legislação já estabelecia restrição à abertura de novos leitos nessas unidades.
No território nacional, há décadas, profissionais da saúde mental, pacientes e familiares, sob o argumento e as evidências do quão inadequada é a ação de deixar pessoas morando em um hospital, atuam para acabar com a longa permanência de pacientes em unidades psiquiátricas.
Como ocorre a procura?
No Hospital, conta a assistente social Thanara Pereira, os pacientes recebem abordagem multidisciplinar, com psiquiatras, psicólogos, terapeuta ocupacional e serviço social. Eles moram em áreas de internação, e participam de atividades grupais durante o dia. Os diagnósticos são variados, bem como o grau de dependência desses pacientes. Alguns carecem de mais assistência, atenção e suporte, outros menos, afirma.
No caso dos pacientes institucionalizados há mais de um ano, muitos deles foram atendidos após estarem em crise na rua, e foram levados às unidades pelo Serviço de Atendimento Móvel (Samu) ou pela Polícia. Geralmente, chegam desacompanhados de parentes, e em boa parte dos casos sequer trazem consigo documentos.
"A gente faz a busca pelo nome do paciente em diversos equipamentos, em CAPS, unidades básicas de saúde, em CRAS. O que eles (pacientes) vão colocando como informação que possa dar um norte dessa busca, a gente vai utilizando. Faz contato com o INSS, com delegacias, com tudo. O que a gente pode utilizar para fazer essa busca por informação, a gente utiliza”.
Ela também relata que já houve situações em que o paciente conseguiu dizer algumas informações que recordava sobre o bairro onde morava, e a partir daí a equipe iniciou a procura em Fortaleza.
"Perguntamos, você consegue mostrar onde morava? Consigo. E a gente foi para dentro de um determinado bairro e ia mostrando os locais até conseguir identificar alguém da família. Nesse caso especificamente ele foi reconhecido por um um morador do bairro e levou a gente até a casa da família”.
Em outros casos, até a coleta da digital já foi viabilizada para garantir a busca nos sistemas de identificação tanto do Ceará, como em outros estados. Uma das pessoas internadas, relata ela, já foi mandada para Sergipe ao encontro dos parentes. A desinstitucionalização, avalia, “é um passo a mais dentro do processo de Reforma Psiquiátrica no Ceará”.
Impactos da longa permanência
Dentre as consequências da longa permanência dos pacientes em instituições hospitalares, avalia a psiquiatra Lisiane Cysne, está a amplificação dos processos de exclusão dessas pessoas do meio social, além da perda de vínculos.
Também causa, segundo ela, “pouca ou nenhuma implicação familiar no processo de tratamento dessas pessoas com transtorno mental. Temos uma retirada da cidadania dessas pessoas. Em última instância, assim, a perda da individualidade. Que essa pessoa passe a ser vista como um objeto”.
O processo de desinstitucionalização, ressalta a médica, não passa apenas pela estrutura física. Requer quebrar preconceitos.
“Mudança no preconceito da linguagem, nas falhas dos sistemas jurídicos, nos mitos absurdos de agressividade dos ‘loucos’. São mitos que são aceitos com verdades. É impressionante esse estigma que nós temos desses pacientes. Uma ‘necessidade’ social de isolar e esquecer esse paciente com transtorno mental”
Ela destaca ainda que há muita resistência tanto por parte dos profissionais de saúde, como da sociedade de modo geral. “Então, esse processo de desinstitucionalização, tem que ter um compromisso com as políticas públicas. Tem que ser mais incisivas e tem que passar por um financiamento também dessas políticas”, enfatiza.
Desde agosto de 2020, o Hospital conta com a parceria da Superintendência de Fortaleza da Sesa. Em fevereiro de 2021, foi formada a primeira Comissão de Desinstitucionalização da unidade, composta por profissionais do Serviço Social, Psicologia e Psiquiatria.
Em nota, a Sesa disse que a Superintendência tem intermediado junto aos municípios de origem desses pacientes o processo de saída da internação. “É importante ressaltar que a desinstitucionalização é prevista na Lei da Reforma Psiquiátrica 10.216 e deve ser um compromisso do SUS”, diz a nota.
O principal entrave atualmente é referente aos pacientes, explica a Secretaria, é “que mesmo com articulação, busca ativa das equipes dos hospitais e municípios, não é possível retorno familiar. Para esses são direcionados outras possibilidades de moradia, como as residências terapêuticas”.