Méritos e dificuldades: trajetórias de professores no Ceará com mais de 30 anos nas salas de aula

No Dia do Professor, o Diário do Nordeste conta histórias de quem já ajudou na aprendizagem de incontáveis alunos e, apesar da complexidade do ofício, celebra o que faz

Escrito por Thatiany Nascimento , thatiany.nascimento@svm.com.br
Foto: montagem/arquivo pessoal

Do dia em que entraram na sala para ministrar a primeira aula até hoje, já passaram, pelo menos, três décadas. O número de alunos que cruzaram as salas de aula na qual eles, semestre após semestre, seguem na completa e frutífera missão de ensinar, é incontável. A pandemia de Covid os tirou desses espaços. Os levou para as salas virtuais. Um dos grandes desafios na profissão. Mas nela, a mudança é ação permanente. 

Nas universidades do Ceará, docentes contam as particularidades dessas trajetórias tão duradouras e o que os motiva a continuar dando aulas por tanto tempo. No Dia do Professor, o Diário do Nordeste narra histórias de três personagens que, considerando as idades de cada um, já passaram mais anos de vida exercendo a profissão do que sem fazê-la. 

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Quando a enfermeira e professora Maria Vilani Cavalcante Guedes, 74 anos, começou a dar aulas, a Universidade Estadual do Ceará (Uece) sequer existia formalmente. Vilani atuava na Escola de Enfermagem São Vicente de Paulo, a primeira a ter curso de Enfermagem no Ceará. Quando a Uece foi criada, pelo Decreto nº 11.233, de 10 de março de 1975, incorporou a Escola e Vilani  foi uma das docentes que passou a compor o quadro da instituição. De lá para cá, já são mais de 46 anos nas salas de aula. 

Naquela época, recorda a professora, como a estrutura da Universidade ainda estava em preparação, no curso de Enfermagem, que saiu do Centro (da Escola São Vicente de Paulo) para o Itaperi, as aulas ocorriam em ambientes improvisados, narra ela: “quando a Universidade absorveu a Escola de Enfermagem foi que a gente passou a dar aulas no campus do Itaperi. Dava aula na sala do pessoal que morava lá como caseiro. Nessa época entravam uns bichos na sala, até porco”. 

No decorrer dos anos, apesar de ocupar também funções administrativas e chefia de departamento, a professora não deixou as salas de aula. Além de ensinar, explica ela, no percurso foi possível garantir outros grandes feitos como criar um posto de saúde no campus.

“O maior orgulho é você ver o aluno terminar a graduação, entra no mestrado, entra no doutorado, faz um concurso para professor e passa. Pode ser que não seja para todo mundo, mas para mim é altamente gratificante quando encontro algum aluno que fez isso. Às vezes, a pessoa quer complicar a coisa falando difícil (em sala de aula), mas não precisa. Muito preparo é saber tirar dúvida. É fazer com que o aluno compreenda bem”. 

Novas experiências e adaptações

Na trajetória constam aulas para graduação, mestrado e doutorado. “Depois disso tudo, eu comecei a trabalhar com pesquisa com alunos de graduação. O primeiro projeto financiado pelo CNPQ (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) foi para uma aluna que hoje é professora de enfermagem”, conta orgulhosa. No dia a dia, relata, encontrar ex-alunos que se tornaram também professores em universidade estaduais e federais, é uma das gratificações. 

Enfermeira e professora Maria Vilani Cavalcante Guedes, 74 anos
Legenda: A enfermeira e professora Maria Vilani Cavalcante Guedes, 74 anos, começou a dar aulas, a Universidade Estadual do Ceará (Uece) sequer existia formalmente
Foto: Arquivo pessoal

Quando a pandemia chegou, Vilani já estava nas salas de aula há pelo menos 44 anos. Ainda que esse trabalho a faça lidar com permanentes desafios, aquela paralisação em 2020 foi completamente atípica, recorda ela. “Você fica em casa, e se tiver uma internet que se sustenta, não tem muito problema. Mas a coisa fica estranha porque tem aluno que não abre a boca para nada. No remoto, você fica sempre pensando: será que eles estão entendendo?” 

Hoje, aos 74 anos, a rotina inclui aulas remotas nas tardes de terças-feiras, nas manhãs e tarde das quintas-feiras e nas tardes das sextas-feiras, além do tempo destinado à orientação dos alunos que fazem pesquisas. Na graduação, Maria Vilani ministra 4 disciplinas. No mestrado e doutorado, esse semestre, participa de uma. 

“As aulas remotas se tornaram mais complicadas para alunos de mestrado e doutorado. Mas ainda assim na graduação tivemos trabalhos excelentes. Quando vi, eu pensei ‘esses meninos vão longe’”, conta ela. Na Uece, quando o docente faz 75 ele passa por aposentadoria compulsória. Após isso, caso deseje pode tentar ingressar como professor visitante.

Em março de 2021, Vilani deu entrada no processo de aposentadoria e aguarda o desfecho. Mas garante: “Quando me aposentar eu vou terminar o semestre. Os alunos ficaram setembro, outubro, novembro e dezembro. Aí faltando um mês, você vai entregar a turma para outro professor? Eu quero terminar direitinho e vou continuar com eles até finalizar”. 

Contribuição à engenharia

Enquanto a professora da Uece ajuda na formação de inúmeros novos enfermeiros, o professor Lindberg Gonçalves, de 74 anos, que hoje, além de docente do Departamento de Engenharia Metalúrgica e de Materiais da Universidade Federal do Ceará (UFC), é diretor do Campus de Russas, auxilia na capacitação de novos engenheiros. 

Professor Lindberg Gonçalves
Legenda: O professor Lindberg Gonçalves, de 74 anos, ingressou na Universidade Federal do Ceará (UFC) em 1977 e é o decano da instituição
Foto: Viktor Braga/UFC

De acordo com a Pró-reitoria de Gestão de Pessoas da UFC, Lindberg é o decano da instituição. Conforme o professor, o ingresso para dar aulas na federal foi em 1977.  “Em janeiro de 1971 foi aberto um concurso. Em 1º de dezembro de 1971 fui contratado pela Universidade Federal do Ceará. Fui fazer doutorado na Inglaterra em 1977, depois da minha defesa, assumi meu cargo de professor, inicialmente no Departamento de Física”, explica. 

No percurso, Lindberg já participou da implantação do primeiro doutorado do Estado, da criação do Departamento de Engenharia Metalúrgica e da abertura da UFC em Russas. 

Sou um grande defensor da interiorização. Acho que qualquer coisa que envolva a educação é bem-vinda em todos os níveis. O Brasil precisa investir. Quanto mais universidade, escolas básicas, é a única forma que temos para sair do atraso, da miséria, de todos esses problemas sociais”
Lindberg Gonçalves
Professor decano da UFC

Embora tenha ocupado postos diversos na vida acadêmica, Lindberg ressalta que “durante anos e anos fui professor das disciplinas introdutórias de física”. E que considera a etapa da graduação como prioritária. “O professor experiente tem obrigação de atuar na graduação”, completa. 

Aulas presenciais como marca

Quando foi contratado para atuar na UFC, relembra, o Instituto de Física ficava na Av. Da Universidade, no Benfica, no “prédio dos três institutos (física, química e matemática)”. Mas quando começou a trabalhar efetivamente como professor, aos 30 anos, o Instituto, transformado em Departamento de Física, já estava situado no Pici. 

No atual semestre,- que, na UFC, começou em setembro e segue até fevereiro de 2022 - Lindberg não está dando aulas. Mas, pretende voltar em março de 2022. Uma das vontade, demarca, é o contato presencial, a sala de aula, o encontro e a interação.

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“Eu só dou aula presencial. A última disciplina que lecionei foi no segundo semestre do ano passado na pandemia. Aula da Pós-Graduação em Engenharia e Ciências de Materiais. Era numa sala de videoconferência, com máscara e protetor facial e dois alunos assistindo minha aula, como se fosse presencial, normal, mas ela era filmada e transmitida, e mais 20 alunos assistiam onde estivessem”. 

O retorno às salas deverá, segundo o professor, ser para os alunos da graduação em Russas. Em abril de 2022, ele fará 75 anos, e conforme as regras da UFC e as normas federais, deverá se aposentar compulsoriamente. Mas, os planos são de “continuar como professor, mesmo quando me aposentar” A UFC permite que professores aposentados sigam na instituição, contudo, sem vínculos empregatícios. 

Diálogo com novas gerações

Professor Charleston Teixeira
Legenda: O professor Charleston Teixeira passou no vestibular na Universidade de Fortaleza em 1984 e, quando estava no final do curso, ainda concluindo as últimas disciplinas, surgiu a oportunidade de virar docente. O contrato foi formalizado em 1989
Foto: Universidade de Fortaleza/Divulgação

Aos 17 anos, Charleston Teixeira fez vestibular para uma profissão que tinha acabado de ser regulamentada por lei: a fonoaudiologia. Era 1984 e a regulamentação ocorreu em 1981. Desde o Ensino Médio, recorda, sabia que queria trabalhar na área da saúde e da comunicação, mistura “que é a tônica da fonoaudiologia”, completa.

Ele passou no vestibular na Universidade de Fortaleza e quando estava no final do curso, ainda concluindo as últimas disciplinas, surgiu a oportunidade de virar docente. O contrato foi formalizado em 1989. 

“Antes de terminar a graduação, uma querida professora teve que se afastar, e abriu um concurso para a disciplina que eu estava fazendo. Eu estava na disciplina do último semestre. Ela sinalizou que eu poderia me candidatar. Me enchi de coragem e tentei esse concurso e logo eu fui ensinar aos meus colegas. Você imagina eu dando aula para os meus amigos que, por algum motivo, atrasaram o curso”, conta. 

Na Universidade, deu aulas na graduação e na pós-graduação, cursos e coordenou uma especialização. Passados todos esses anos, ainda permanece em sala de aula.

Eu sempre tive essa característica de querer ajudar as pessoas. No começo, através da fala, da comunicação e do cuidado. O que me motivou a permanecer em sala de aula é isso. A gente tem um processo de vocação para estar diante dos outros e fazer com que eles reflitam sobre a melhor maneira de ajudar as pessoas”.
Charleston Teixeira
Professor da Universidade de Fortaleza

Na pandemia, conta ele, depois de décadas em sala de aula, foi preciso “desconstruir alguns preconceitos” e ressignificar o formato remoto. Aos 54 anos,  Charleston avalia que “fez as escolhas certas lá no começo” e um dos orgulhos é justamente ter elegido a profissão que exerce. 

“Quando entrei na universidade eu tinha a idade dos meus alunos. Tínhamos conversas da mesma geração. Hoje, se for dividir as gerações de 10 em 10 anos, o que me separa dos meus alunos são três gerações. ”. 

O ofício em sala de aula, avalia ele, é prazeroso, mas tem uma série de pré-requisitos: ter bom suporte emocional, físico, boa capacidade de comunicação, de organização das ideias, são alguns deles. “Toda profissão envolve isso, bases físicas, emocionais e técnicas. Ser professor é uma profissão que acompanha a gente a vida toda”. 

 

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