Jogo do bicho: 'nunca deixou de correr um só dia'

Escrito por Redação ,
Legenda: A antropóloga Simone Simões pontua a independência do jogo do bicho em Fortaleza, diferente das outras cidades brasileiras
Foto: Foto: Yago Albuquerque

Autointitulado viciado, o cambista-apostador João Jacaré é parte do jogo do bicho há dez anos. Das possibilidades que a jogatina lhe oferece, nem milhar, nem grupo são as melhores saídas, a dezena soa-lhe como a melhor possibilidade de vitórias.

Atrás da sua banqueta, Jacaré formula técnicas na intenção de acertar o número exato de pelo menos uma das seis extrações do jogo diárias. "O jogo aleatório não rende, os patrões não gostam muito da gente porque a gente perde menos. Se todo mundo jogasse que nem eu, o jogo do bicho acabaria", diz.

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Trabalhando com probabilidade, o homem diz "acertar alguma coisa todo dia". Chega a jogar R$ 60 diários, enquanto ganha, normalmente, até R$ 50; contudo, na última semana, o aproveitamento de João foi pela metade: acertou três e perdeu três. Apesar disso, para ele, "jogo do bicho nem é o bicho papão, quem toma dinheiro do povo é a Lotofácil e a Mega-Sena".

Opinião compartilhada pela antropóloga Simone Simões, professora aposentada da Universidade Federal do Ceará (UFC) que encabeçou a primeira pesquisa sobre o jogo do bicho no Brasil. Pesquisando cidades como Fortaleza e Rio de Janeiro, além do Distrito Federal, Simone formulou uma contradição: "enquanto essas loterias existem, só o jogo do bicho é uma contravenção", assinala.

Defensora indubitável da prática no País, Simone não acredita na aprovação do Projeto de Lei sobre a exploração do jogo do bicho no Senado. "Essa legalização tramita há muito tempo e nunca passa", relata. Dos quatro anos dedicados ao estudo do assunto para formular sua tese, descobriu que os bicheiros preferiam mesmo era que deixassem como está, "na contravenção, porque não pagam nada".

Entretanto, há diferenças nas formas de exploração que podem vir a tornar o jogo do bicho uma prática legal. Segundo a antropóloga, a oficialização é "ficar na mão do Governo, como as loterias; enquanto a legalização é deixar de ser contravenção penal e ficar na mão dos bicheiros - é isso que eles preferem". Caso haja a oficialização, o pensamento é de que os cambistas ficarão sem ocupação. "Eu acho que eles até tentariam encontrar uma forma de continuar na ilegalidade, mas é muito complicado ser uma ilegalidade dentro da legalidade", afirma a antropóloga. Segundo ela, a partir do início da proibição, o jogo do bicho foi estigmatizado, principalmente por não ser um "jogo da elite", mas "do povão".

Em contrapartida, desde o surgimento, as pessoas continuam fazendo sua fezinha, apostando no bicho sonhado ou na placa do carro que passou há poucos minutos à sua frente. No fim das contas, há algo que sempre foi motivo de enaltecimento da contravenção para todos os bicheiros entrevistados por Simone: "apesar de todos os estigmas, o jogo nunca deixou de correr um só dia, mesmo no auge na repressão".