Hapvida obrigava médicos a receitarem 'kit Covid' e mantinha lista de 'médicos ofensores', diz MPCE

A operadora de saúde também é alvo de fiscalização da ANS e passa por sindicância do Cremec para apurar a imposição da prescrição de remédios sem eficácia.

Escrito por Redação , metro@svm.com.br
Legenda: Cartela do Kit recebido por uma cliente da rede, contendo hidroxicloroquina, sem que ela tenha sido testada para Covid, em janeiro de 2021
Foto: Arquivo pessoal

O plano de saúde Hapvida responde, há mais de um ano, a um processo administrativo instaurado pelo Programa Estadual de Proteção e Defesa do Consumidor (Decon), do Ministério Público do Estado do Ceará (MPCE), que apura denúncias sobre a prescrição de medicamentos do chamado “kit Covid” a pacientes da rede. O recurso do caso deve ser julgado em outubro.

O “kit Covid” inclui fármacos como cloroquina e hidroxicloroquina, indicados para artrite reumatoide, lúpus e malária, e ivermectina, usada contra vermes. No entanto, nenhum deles teve eficácia comprovada cientificamente para combater a Covid-19.

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Desde junho de 2020, a operadora é investigada pelo Decon sobre a imposição do uso de hidroxicloroquina. O Diário do Nordeste teve acesso ao procedimento investigatório.

Em depoimento ao MPCE, o médico generalista cearense Felipe Nobre, que trabalhou na operadora de janeiro a maio de 2020, durante a primeira onda da pandemia, relatou pressões internas para a prescrição de medicamentos sem eficácia comprovada.

"Essa pressão acontecia para todos os médicos que trabalhavam na rede, especialmente no hospital Antônio Prudente", revelou o médico à reportagem.

O profissional, formado em 2019, declarou que a empresa analisava prontuários dos pacientes infectados, por meio de um sistema que permite auditoria, para verificar se os médicos estavam receitando hidroxicloroquina. "Com isso, eles conseguiam identificar quem estava prescrevendo ou não", explica.

Ele afirmou que o plano chegou a elaborar um “ranking de médicos ofensores”, ou seja, que não receitavam o medicamento. "Os ofensores eram vistos como inimigos do plano".

No período citado, Felipe Nobre também relatou que o chefe de uma unidade de saúde da rede afirmou, em um grupo de mensagens interno no WhatsApp, que "não cabe discussão sobre a hidroxicloroquina", orientando aos profissionais subordinados a pararem de informar sobre os possíveis riscos da medicação.

As aborgadens também eram realizadas pessoalmente. "Eu recebi pelo menos quatro visitas em consultório, referente a essa prescrição, sendo orientado a prescrever, pois fazia parte do protocolo da instituição, e que eles estavam vigiando se estavam prescrevendo ou não".

Em uma dessas visitas, conta o médico, ele chegou a ser visitado no consultório por um coordenador que o questionou por que não prescrevia hidroxicloroquina a pacientes com suspeita de Covid-19. O médico defendeu que não havia estudos sobre a eficácia do medicamento contra a doença. O generalista foi demitido pela operadora de saúde nove dias depois.

Felipe Nobre revelou ainda que há cerca de duas semanas foi procurado pelo Agência Nacional de Saúde (ANS), que também investiga a denúncia, para prestar esclarecimentos (ver mais informações abaixo).

A apuração do MPCE também se baseia no registro da reclamação de uma consumidora do plano, que contou ter recebido a receita de hidroxicloroquina de um médico do Hapvida sem sequer ter sido testada para a Covid-19.

O que diz a defesa

Em defesa escrita que consta no processo administrativo, em agosto de 2020, o Grupo Hapvida rebateu, uma a uma, as acusações do médico.

Alegou que não há imposição a médicos assistentes na prescrição de determinada medicação, externando a "convicção de que a prescrição de todo e qualquer medicamento é uma prerrogativa do médico assistente, e que o tratamento do paciente é baseado na autonomia médica e na valorização da relação médico-paciente".

Disse ainda não ter gerência sobre a guarda e auditoria de receituários médicos, que são sigilosos, sendo essa responsabilidade dos próprios estabelecimentos de saúde (como hospitais e clínicas).

"Embora possua profissionais médicos como prestadores de serviços, a signatária jamais os obrigou a informar diagnósticos, fornecer laudos, realizar ou atestar atos, e tampouco a prescrever medicações específicas", ressalta a defesa.

Por fim, diz que, como o médico já manifestava interesse em deixar de prestar serviços para o plano, também não houve interesse da operadora em manter o contrato, "não figurando o rompimento do mesmo como conduta infrativa, tampouco prova das acusações formuladas pelo profissional".

Já sobre o caso da cliente, a operadora informou que autorizou o exame para diagnóstico da Covid-19, inclusive apresentando a senha do procedimento. Ao refutar os argumentos, a empresa pediu o arquivamento do processo administrativo.

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Multa sob análise

Porém, em abril deste ano, a empresa foi multada em R$ 468,3 mil pelo Decon, por “impor, indistintamente a todos os médicos conveniados, que receitem determinados medicamentos no tratamento de pacientes com Covid-19”. 

Conforme o Decon, a prática desrespeita a relação médico-paciente, fere o Código de Defesa do Consumidor (CDC) e a autonomia profissional garantida pelo Código de Ética Médica. 

O MPCE informou que a operadora foi notificada da decisão no dia 26 de abril de 2021 e apresentou defesa no dia 10 de maio de 2021. 

Em manifestação de recurso, a defesa da Hapvida considerou as denúncias do médico "vazias" e sem "qualquer lastro probatório", sugerindo que o órgão investigador deveria ter ouvido mais profissionais vinculados à empresa.

Também considerou exagerado o valor da multa cobrada, já que apenas duas pessoas (e apenas uma consumidora) foram ouvidas para a fundamentação do processo. Por isso, a empresa requereu a anulação da decisão administrativa ou, eventualmente, a redução da multa ao valor mínimo previsto em lei.

Atualmente, o processo está em análise na Junta Recursal do Decon e tem previsão de julgamento em outubro deste ano, segundo o MPCE.

Procedimento disciplinar

Em resposta a um ofício do Decon, em julho de 2020, o  Conselho Regional de Medicina do Ceará (Cremec) afirmou ter instaurado uma sindicância interna para apurar a denúncia contra o Hapvida e ter convocado o diretor técnico do plano para uma reunião.

Em 1º de setembro de 2021, ao responder a uma solicitação da CPI da Pandemia instalada no Senado Federal, o Cremec confirmou que há um processo ético-disciplinar contra a empresa, mas não poderia dar detalhes porque a apuração segue em sigilo processual.

O Cremec foi procurado pelo Diário do Nordeste nos últimos dois dias, mas não enviou retorno sobre o tema.

Prescrição era comum, dizem pacientes 

Clientes do plano de saúde revelam que, ao longo da pandemia, receberam a indicação médica do coquetel mesmo sabendo que não há eficácia científica comprovada para combater a doença. A pedido das fontes, seus nomes serão mantidos em anonimato.

Um homem afirmou que, em 2020, procurou atendimento na rede em três ocasiões por sintomas gripais e, em todas, recebeu o kit. Ele, inclusive, foi “obrigado” a assinar um termo de responsabilidade no ato da entrega dos medicamentos. Contudo, não chegou a tomá-los.

O paciente conta que uma médica que o atendeu em uma das vezes, visivelmente constrangida, disse que “era determinação do hospital” receitar o kit, mas que ele ficasse à vontade para não tomar a cloroquina e a ivermectina. Com dor de garganta, ele recorreu apenas a antibiótico.

Legenda: Receituário do paciente recomendando o uso de cloroquina e ivermectina.
Foto: Arquivo pessoal

Em janeiro de 2021, uma mulher de 29 anos procurou um hospital da rede no segundo dia de sintomas de gripe. Mesmo sem um teste confirmado, já que ela estava fora da janela recomendada, o médico que a atendeu também prescreveu o kit afirmando ser “procedimento do hospital”. 

“Vinha até em um saquinho”, lembra a mulher, confirmando a necessidade de assinatura do termo de consentimento. Os pacotes continham comprimidos individualizados e traziam apenas o nome comercial da hidroxicloroquina.

Nem confirmaram o que eu tinha. Tomei porque você confia na palavra do médico e quer que a doença passe. Mas, depois, fiz um teste para Covid e deu negativo. Meu caso era só uma virose, uma gripe normal.

A paciente relata que chegou a tomar um comprimido de cloroquina no primeiro dia, mas à noite não se sentiu bem, “como se a pressão estivesse alta”, e parou o uso. O médico da irmã dela também recomendou a interrupção e passou outra receita.

Em abril de 2021, um homem de 36 anos procurou a assistência do plano no bairro Parangaba. Já testado positivo para a doença, recebeu no consultório a receita de um kit com hidroxicloroquina e ivermectina - mas não o pediram para assinar nada.

Eu segui o passo a passo que o médico prescreveu. Doze dias depois, testei negativo e voltei ao trabalho. Quatro dias depois do negativo, me senti mal. Dor no peito, gastura, ânsia de vômito, e minha esposa me levou pro hospital já infartando.

O homem teve uma parada cardíaca e precisou passar 60 dias internado, sendo 45 dias na Unidade de Terapia Intensiva (UTI), passando por cirurgias complicadas e hemodiálise. Hoje, ele deve seguir uma rotina controlada de medicamentos e não pode fazer grandes esforços.

Para ele, que se considerava saudável antes do ataque, as complicações cardíacas foram reflexo do uso das drogas do kit Covid, ainda que os médicos não tenham explicado essa possibilidade porque atribuíram seu caso a uma síndrome pós-Covid.

Relação médico-paciente

Na defesa do processo no Decon, o Hapvida lembra um parecer do Conselho Federal de Medicina (CFM), de 2020, para o qual é decisão do médico realizar o tratamento que julgar adequado, desde que com a concordância do paciente infectado. 

Procurado pela reportagem, o CFM declarou que o parecer nº 4/2020 “segue em vigor”.

“As denúncias contra médicos no exercício de sua função devem ser apresentadas ao Conselho Regional de Medicina no estado em que ocorreu o atendimento”, complementa.

No Ceará, o Cremec também emitiu uma nota, aprovada em junho de 2020, reafirmando a autonomia do médico na prescrição de medicamentos.

Investigação paralela

A Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) também abriu um processo próprio no dia 30 de agosto de 2021, para apuração de “eventual restrição, por qualquer meio, à liberdade do exercício de atividade profissional do prestador de serviços” na rede Hapvida. 

Uma visita à sede da empresa, em Fortaleza, na última segunda-feira (27), teve como objetivo o levantamento de mais informações. Conforme a Agência, servidores da fiscalização solicitaram documentos complementares e deram prazo de 5 dias úteis para a operadora se manifestar.

Além da empresa cearense, também foi visitada a sede da operadora São Francisco, em Ribeirão Preto (SP), que foi adquirida pelo Grupo Hapvida em 2019. 

Em nota, a Hapvida declarou que “vai apresentar os dados solicitados e está certa de que as dúvidas serão plenamente esclarecidas”.

Termo de consentimento

Além da suposta imposição na receita, o plano foi questionado sobre a assinatura do termo de consentimento pelos beneficiários atendidos na rede própria para a prescrição do kit.
 
“Após o prazo, a ANS irá analisar todas informações, que subsidiarão as decisões quanto às medidas que deverão ser adotadas. Todavia, se forem constatadas ações que não sejam de competência da Agência, os documentos poderão ser encaminhados para as entidades competentes”, finaliza.

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