Eletroconvulsoterapia: os dilemas de um método estigmatizado
A aplicação de correntes elétricas no cérebro de pacientes com doenças mentais ainda é cercada de tabus devido às práticas irregulares do passado. Mas, hoje, a técnica é regulamentada e segue parâmetros internacionais
Gerar convulsões em seres humanos a partir de estimulação elétrica na cabeça. Quando mencionada dessa forma, a terapia que se vale da aplicação de corrente elétrica no cérebro pode remeter a práticas inaceitáveis cometidas em diversos manicômios no passado: os eletrochoques em pacientes psiquiátricos.
Porém, a eletroconvulsoterapia (ECT), embora siga princípios semelhantes ao eletrochoque - ao induzir convulsões no paciente -, guarda diferenças significativas do antigo método, usado, inclusive, para tortura e punição.
A prática atual é regulamentada e, para ocorrer de forma adequada, segue parâmetros médicos internacionais que preconizam a aplicação de anestesia e relaxante muscular em quem vai receber o procedimento. Além disso, só pode ser adotada em casos cuja indicação se justifique. A convulsão induzida gera efeitos na comunicação entre células do sistema nervoso central dos pacientes e ajuda em situações em que o tratamento com remédios já não responde. O medo da repetição do passado é evidente e isto aumenta a polêmica em relação ao tratamento.
Procedimento
A técnica, que não é consenso entre os profissionais da saúde mental, é aplicada em alguns estados e ganhou destaque neste mês, quando uma nota técnica do Ministério da Saúde veio a público. O documento do Ministério da Saúde projeta que o Governo Federal passará a financiar a compra de aparelhos para a realização de eletroconvulsoterapia. Mas qual a necessidade e objetivo desta ação?
No Ceará, por não estar disponível no Sistema Único de Saúde (SUS), o método não é realizado em nenhum hospital público. Apenas uma clínica particular faz o procedimento em Fortaleza a um custo que supera o valor do salário mínimo, por sessão.
O presidente da Sociedade Cearense de Psiquiatria, Joel Porfirio Pinto, que os países com sistemas de saúde desenvolvidos, tanto em tecnologia, quanto em modelos semelhantes aos que o Brasil deseja alcançar como, Canadá e Inglaterra, "utilizam, quando necessário, a ECT, enquanto no Brasil essa possibilidade no sistema público está focada unicamente nos hospitais ligados a algumas das grandes universidades".
O médico acredita que é necessário desmistificar o que o tratamento é na realidade. E para isto, relata ele, é necessário reconhecer que, durante muito tempo, o eletrochoque foi usado de modo indiscriminado e até como meio de tortura e punição de pacientes.
Além disso, destaca que hoje o uso é restrito e a adoção é recomendada em casos específicos, não sendo, em sua avaliação, uma prioridade na área da saúde mental, já que outras políticas de maior alcance e público padecem de atenção. O psiquiatra defende o procedimento como uma possibilidade terapêutica, mas reforça que "temos muito mais gente sofrendo por outras necessidades".
A avaliação é reiterada, em parte, pelo médico psiquiatra e professor da Universidade Federal do Ceará (UFC), Antônio Mourão Cavalcante. Ele também ressalta a necessidade de não priorizar um método que, conforme ele, além de polêmico, alcança um pequeno número de pacientes. "Temos coisas muito mais sérias e graves a serem discutidas e agilizadas no campo da saúde mental. Como, por exemplo, a não atenção para com os pacientes crônicos para que eles não permaneçam nesses hospitais ou alijados pelas famílias", ressalta.
O presidente do Conselho Regional de Psicologia, Diego Mendonça, também é contrário à prioridade dada pelo Governo à eletroconvulsoterapia. O argumento dele é que o espaço qualificado de saúde mental e a luta antimanicomial devem privilegiar outros equipamentos da rede psicossocial. "A discussão de eletroconvulsoterapia é a de um outro modelo no qual nós não concordamos historicamente, nem concordamos do ponto de vista de evidências científicas e afetividade para a maioria das pessoas que se submete a ele".
Demanda
No Ceará, a Defensoria Pública Estadual registrou apenas uma solicitação para aplicação do método nos últimos quatro anos, conforme a defensora Karine Matos. "Acredito que essa mudança na política pode ter um número maior de demanda e isto aumentar a judicialização", explica.
No Tribunal de Justiça do Ceará e no Ministério Público Estadual, os sistemas não registram as demandas judiciais por nome dos procedimentos demandados. Portanto, não é possível saber, dessa forma, quantos pleitos judiciais requerendo aplicação da técnica (não disponível no SUS) foram feitos no Estado nos últimos anos.
O único médico que realiza o procedimento no Ceará, o psiquiatra André Gadelha, explica que, por mês, ele chega a realizar o procedimento, em média, em quatro pacientes. André defende a relevância do método terapêutico e destaca que a forma irregular, como foi adotada no passado, faz com que essa abordagem ainda seja cercada de preconceitos.