Da compra de atestado à fraude de documento: o impacto da ética na vacinação contra a Covid-19
Pessoas fraudam documentos, buscam outras cidades e prejudicam o andamento do processo de imunização. Ministério Público Estadual do Ceará já recebeu 220 denúncias desde janeiro
Até o fim da semana, a vacinação contra a Covid-19 para a população geral de 18 a 59 anos já começou em mais de 150 cidades cearenses, de acordo com o vacinômetro da Secretaria da Saúde do Ceará (Sesa). Contudo, há cearenses desse grupo que anteciparam ou tentaram antecipar a imunização através de artifícios que, além de ferirem a ética, feriram a lei.
Desde 18 de janeiro, quando a campanha foi iniciada, até o último dia 16 de junho, o Ministério Público do Estado do Ceará (MPCE) recebeu 220 denúncias de burla da fila de imunização em 67 cidades. Prefeitos, empresários, advogados e até um cantor de forró foram informados como possíveis intrujões.
O promotor de Justiça Eneas Romero, coordenador do Centro de Apoio Operacional da Saúde (CaoSaúde), confirma que problemas continuam acontecendo, só mudaram de perfil. No início, quando as doses eram escassas, o uso de influência política foi um dos principais motivos das denúncias. Contudo, com o avanço para a Fase 3 de imunização, as comorbidades receberam mais holofote.
Temos casos de comorbidades em pessoas que supostamente não teriam. Há algumas investigações em curso, mas é avaliado caso a caso porque você não pode presumir que um documento médico é falso. Isso exige perícia, verificação de exames, a prova completa.
Procurados pelo Diário do Nordeste, nem o Conselho Regional de Medicina do Estado do Ceará (Cremec), nem a Ouvidoria do MPCE ou o Sindicato dos Médicos do Ceará registraram denúncias de profissionais que estariam assinando laudos falsos. A Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS) não respondeu à questão.
Até 18 de maio, o MPCE recomendou às administrações municipais de 43 cidades fiscalização para evitar burla na descrição de comorbidades, exigindo a apresentação de atestado médico e, nos locais de vacinação, uma equipe médica para checagem da condição, por amostragem e de forma aleatória.
Mesmo sem registros oficiais, o procedimento existe. A reportagem conversou com uma professora cearense da área da saúde, de 27 anos, sob anonimato, que confirmou ter conseguido um falso atestado com uma amiga enfermeira que atua na Região Metropolitana de Fortaleza.
A professora - que não tem vínculo com unidade hospitalar, por isso não foi imunizada na Fase 1 - diz que só recorreu ao método por causa da iminência do retorno às aulas presenciais. Como mora com a mãe, teme por levar a contaminação da sala de aula para dentro de casa.
Ela também mostrou o atestado fraudado, carimbado, assinado e com selo oficial. Na justificativa para a vacinação, foi enquadrada como paciente com pneumopatia (doença pulmonar crônica grave). Porém, é saudável e não sofre com a condição.
A mulher garantiu que a conduta foi um “quebra-galho”, em regime de exceção, e feita com discrição para evitar suspeitas. O Conselho Regional de Enfermagem do Ceará (Coren-CE) informou que não recebeu denúncias do tipo pelo fato de a Enfermagem “não emitir atestados com essa finalidade”.
Em mais um contato, outra cearense contou sobre o beneficiamento irregular de uma parente:
O Conselho das Secretarias Municipais de Saúde do Ceará (Cosems) informou que “entende que o atestado médico é incontestável”. “Em caso de suspeita, orientamos que seja acionado o Conselho Regional de Medicina, para que haja uma investigação do caso”, completa.
Esta é uma das situações que o MPCE indica ser crime de falsidade ideológica relacionada à vacinação:
- Fraudar atestado de comorbidade;
- Fingir ser profissional de saúde ou de educação sem atuar na área;
- Falsificar certidão de nascimento e outros documentos que modifiquem a idade.
A pena pode chegar a cinco anos de prisão e multa, segundo o artigo 299 do Código Penal. "Todo município possui o seu plano de vacinação e ele deve ser obedecido pela população e pelos profissionais envolvidos no processo", atenta o Ministério.
Registros em queda
O promotor Eneas Romero afirma que, com a adoção do critério de idade, as fraudes “estão despencando”. “Basta checar um documento de identidade civil. A vacinação está sendo muito mais rápida, com muito menos conflitos. Entramos numa fase mais igualitária, você vai vacinar todos independente da atividade”, explica.
Rilson Andrade, vice-presidente do Cosems e secretário de saúde de Pindoretama, confirma que as denúncias eram mais frequentes no início do processo de vacinação, mas, com o trabalho de conscientização de órgãos públicos e da imprensa, acredita que a conduta “caiu drasticamente”. Contudo, alguns ainda tentam.
"Sábado (12/06), estávamos vacinando e tinha três ou quatro pessoas de outros municípios que vinham sem declaração de residência, e o cadastro estava em outro município. A gente não vacinava", conta Rilson.
Vacinação em cidades diferentes
Essa foi uma conduta adotada por uma administradora de empresas, de 39 anos, moradora do Eusébio. Ela se inscreveu primeiro no município de residência, mas percebendo que “a quantidade de doses que chegava era ínfima diante da quantidade de habitantes”, alterou o cadastro para Fortaleza utilizando o endereço da mãe.
“Fortaleza me chamou pra vacinar 30 dias antes do que Eusébio disponibilizou a dose pra que eu tomasse a vacina, então foi mais rápido”, explica ela, que tem comorbidade e estava enquadrada na Fase 3.
A administradora, porém, não se considera uma fura-fila porque seguiu o passo a passo da campanha. “Fura-fila são pessoas que usam de poder por ser filho, irmão, amigo de autoridades pra passar na frente sem qualquer critério”, opina.
Além disso, ela não crê que tenha tomado o lugar de ninguém. “Estamos numa corrida contra um vírus mortal. Vivemos essa tragédia há mais de um ano e temos que lutar com as armas que temos. Minha decisão de tomar na Capital abriu caminho para alguém tomar mais rápido no município que resido”, percebe.
Procurar outro município para se vacinar é uma prática comum em todo o Brasil, de acordo com o professor Krerley Oliveira, coordenador do Laboratório de Estatística e Ciência de Dados da Universidade Federal de Alagoas (LED/UFAL), que alimenta o vacinômetro do grupo ModCovid19.
No Ceará, o mapa elaborado pelo Laboratório mostra, em vermelho, que grande parte das cidades cearenses “exporta” mais pessoas para vacinação em outras cidades do que recebe. Em azul, ocorre o contrário: cidades que mais recebem do que “exportam”.
O promotor de Justiça Eneas Romero pondera que só ter parente em outro município não vale como motivo para a vacinação. O ideal, segundo ele, é que a imunização ocorra na cidade de domicílio para evitar o comprometimento do processo.
“Está chegando vacina em todos os municípios, só tem alguns que estão mais adiantados. Como você unificou o critério, a vacinação tende a ocorrer muito rápido”, ressalta, lembrando que a tipificação criminal depende da comprovação do dolo.
Romero também acredita que a centralização do sistema estadual de cadastro minimiza o problema, já que a mesma pessoa não pode se inscrever em mais de um domicílio.
Queixas nas redes sociais
As redes sociais funcionam como termômetro de indignação quanto aos fura-filas, sobretudo quanto a relatos de falsificação de atestados. Há quem diga que amigos que nunca apresentaram sintomas de asma, por exemplo, conseguiram um atestado e se vacinaram.
No entanto, também há exageros. Cinco usuários que denunciaram supostas fraudes pelas redes, com quem a reportagem conseguiu contato, podem ser enquadrados como os chamados “fiscais de comorbidades”. Ou seja, desconfiam de pessoas próximas, principalmente amigos jovens, mas não têm acesso ao histórico de doenças do suposto beneficiário.
Percepções desencontradas
A reportagem do Diário do Nordeste também entrou em contato com três médicos que atuam na Atenção Básica em Fortaleza e na Região Metropolitana. Um deles confirmou que a venda de atestados médicos aconteceu.
Outro afirma que chegou a ser cooptado por companheiros de trabalho, não-médicos, para liberar atestados para familiares deles, mas não atendeu às exigências.
O terceiro diz desconhecer a situação, mas pondera que, “se as pessoas estão tentando essa via para conseguir a vacina, é porque têm receio de não conseguirem antes de uma terceira ou quarta onda, haja vista a vacinação a conta-gotas que temos”.
Ética em xeque
Renato Evando, professor de Medicina Legal, Direito Médico e Ética Médica da Universidade Federal do Ceará (UFC), considera que o cenário atípico não pode justificar atitudes fraudulentas ou criminosas.
Nós estamos numa situação pandêmica, de calamidade pública. Tudo é diferente da normalidade. Se alguém fura a fila, certamente está trazendo malefício para uma pessoa que poderia estar recebendo aquela vacina, naturalmente até com risco maior de se contaminar e vir a óbito. Os critérios colocados não são feitos sem fundamentação, eles envolvem pessoas que estão mais expostas e com maior risco de morte.
Em relação a atestados falsos, o especialista alerta para duas situações: a que o próprio médico emite um documento "que não condiz com a verdade", e aquela em que algum civil forja o documento, até para comercializá-lo. Quando o “acordo” funciona entre médico e paciente, ele explica que há uma violação de mão dupla.
"Claro que todos querem se vacinar. O ideal é que, de fato, tivesse vacina para todos", conclui Renato Evando.
O médico que expede atestado falso fica sujeito tanto a uma representação ético-disciplinar junto ao Conselho Regional de Medicina quanto a responder a um processo criminal. Cada instância julga o caso de forma independente.
Pelo processo ético-profissional, se a irregularidade for constatada, ele pode receber de uma advertência confidencial a ter o registro profissional cassado, conforme disposto no artigo 80 do Código de Ética Médica.
Pelo artigo 302 do Código Penal, o profissional fica passível à detenção de um mês a um ano. Se o crime é cometido com o fim de lucro, aplica-se também multa.
Já o paciente que utiliza o atestado médico falso também comete o delito de uso de documento falso, disposto no artigo 304 do Código Penal, bem como fere o artigo 299 por “inserir declaração falsa ou diversa da que devia ser escrita, com o fim de prejudicar direito, criar obrigação ou alterar a verdade sobre fato juridicamente relevante”.
Como denunciar
O MPCE declarou que segue investigando denúncias de fura à fila de vacinação contra a Covid-19. Qualquer caso de irregularidade pode ser encaminhado para a Secretaria Executiva das Promotorias de Defesa da Saúde Pública, pelos e-mails secretariapsp@mpce.mp.br ou covid19.denuncia@mpce.mp.br.