Como o sistema de saúde reage aos 100 dias da Covid-19 no Ceará
Em 15 de março, o Estado confirmou os primeiros casos da doença. Desde então, foram muitas perdas e superações vividas. Mas o sistema público de saúde foi e continua sendo o centro dessas atenções
Há 100 dias, fazia sol em Fortaleza. Era domingo. E a polêmica momentânea era o jogo de portões fechados entre Ceará e Sport, na Arena Castelão. O advento do coronavírus já causava temor no Ceará. No Brasil, 14 Estados já contabilizavam casos. Há 100 dias, em 15 de março, o Ceará confirmava os três primeiros pacientes com Covid-19. Agora, se contam 100 dias de dores, perdas, adaptações e superações. E reviravoltas. Mas como era o sistema de saúde antes da pandemia? Que cenário há agora e quais as expectativas para os próximos 100 dias?
Antes, as preocupações, direcionadas no primeiro semestre, sobretudo, às arboviroses - com a expectativa de alta incidência da dengue tipo 2, em 2020 - se voltaram todas para à Covid-19. As emergências e suas demandas diversas como atendimentos cardíacos, neurológicos, traumatológicos e vasculares, dentre outros, não pararam nesse período, é verdade. Mas, em parte, deram lugar à relevância das dores dos acometidos pelo coronavírus. Foi preciso ampliar rapidamente a assistência hospitalar. Até 15 de março, o Ceará confirmou 7.866 casos de arboviroses. Destes, 7.135 eram dengue, conforme dados do IntegraSUS, plataforma da Sesa. Os hospitais seguiam com as demandas corriqueiras, na Capital e demais regiões: leitos ocupados por pacientes com AVC, cardíacos, politraumatizados e também vítimas da violência.
Antes
Na pré-pandemia, só o Instituto Dr. José Frota (IJF), em Fortaleza, entre janeiro e fevereiro, fez 11.563 acolhimentos na emergência para tratar vítimas de queda, engasgo, intoxicações e acidentes de trânsito. Em paralelo, pessoas com doenças crônicas, como diabetes e hipertensão, também seguiam mantendo a rotina de atendimento nos postos.
"O Ceará, nas últimas décadas, tem melhoria consistente dos indicadores de saúde. Um aumento refletido na expectativa de vida", avalia o médico, professor de Saúde Pública e membro do Grupo de Trabalho de Enfrentamento à Covid-19 da Uece, Marcelo Gurgel Carlos da Silva. Para ele, o Estado é "bem provido de hospitais secundários, hospitais polos e também terciários, como os regionais", e com o passar do tempo, "tem aumentado a capacidade de resposta assistencial". É também, diz o médico, um Estado com boa cobertura da Estratégia de Saúde da Família.
Apesar dos avanços, o Ceará pré-pandemia, relata a professora do Curso de Enfermagem da Uece, Thereza Maria Magalhães Moreira, tinha como grandes desafios e demandas "as doenças crônicas, ou suas complicações: infarto, AVC, diabetes, obesidade e câncer". Essas necessidades, diz, "ficaram, em sua grande maioria, recebendo acompanhamento no domicílio, para evitar que as pessoas fossem às unidades de saúde e se contaminassem com coronavírus, pois representavam exatamente grupos de risco".
O cenário que antecede a chegada do coronavírus, conforme o ortopedista e traumatologista, professor do curso de Medicina da UFC Sobral, João Paulo Tavares Linhares, era um sistema de déficits históricos.
"A deficiência em vagas de UTI vem de muito tempo. A gente que lida diretamente com pacientes graves, na minha área da traumatologia sabe. Na nossa região, o índice de acidente é muito alto, então a gente sempre conviveu com essa realidade de escassez nos recursos, leitos e leitos de UTI", complementa João Paulo .
Com os casos de coronavírus já confirmados, em abril, a Sesa informou que o Ceará tinha 1.181 leitos de UTI no Estado, sendo 680 conveniados ao SUS. Na Capital, relata o prefeito Roberto Cláudio, havia cerca de 1.100 leitos de UTI e enfermaria distribuídos nos 10 hospitais municipais pré-pandemia. Nesses 100 dias, só em Fortaleza, foram criados outros 800 leitos.
Agora
Os casos de coronavírus não têm ocorrido de forma homogênea no Estado. Têm percursos distintos de distribuição. Primeiro assolaram a Capital- que hoje reduz índices da pandemia - , e seguiram para o interior. Conforme dados do IntegraSUS, no dia 29 de abril, (data mais longínqua com informações desse tipo disponíveis na plataforma) o Ceará tinha 30 unidades hospitalares, entre públicas e privadas, com leitos para Covid. Na época, eram 571 leitos de enfermaria e 410 de UTIs. No fim de maio, aumentou para 68 hospitais, com 2.065 leitos de enfermarias e 868 de UTIs. Hoje, são 75 unidades hospitalares, com 829 leitos de UTI e 2.024 de enfermaria.
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Alguns dos leitos em Fortaleza foram ocupados pelo agente especial da Polícia Federal, Rucley Cavalcante Braga, de 48 anos. Infectado pelo vírus ainda no início da pandemia, em março, Rucley passou 53 dias internado. Destes, 43 dias foram na UTI e 30 entubado.
O paciente utilizou três serviços de saúde na batalha pela vida. A porta de entrada, ao sofrer com falta de ar, foi a UPA de Messejana. De lá, seguiu para internação no Hospital Leonardo da Vinci e, por último, o Hospital Waldemar de Alcântara.
"Não tenho noção do que vivi nos 30 dias que fiquei em coma. Eu só sei que eu sonhava e tinha pesadelo. Quando acordei foi um susto imenso. Eu fiquei 30 dias apagado", relata Rucley.
Ele é uma das 67 mil pessoas recuperadas da Covid-19 no Estado. Felizmente. Vida nova no tempo em que nada parece normal.
Enquanto Rucley estava internado, a doença se espalhou. O Estádio Presidente Vargas deu lugar a um Hospital de Campanha. Em maio, houve um pico de casos. Hoje, as curvas estão em queda na cidade. "A cada semana, temos o percentual maior de leitos vagos e é importante que a gente mantenha essa rede por algumas semanas, mesmo que vaga. Para, caso haja, algum tipo de retorno eventual", explica o prefeitoRoberto Cláudio, que enfatiza, "o momento é de prudência".
O medo de uma nova onda de casos não sumiu. Nesses 100 dias, foi preciso criar "um sistema de saúde paralelo para a pandemia". Atualmente, a gestão já disponibilizou leitos de Covid para a assistência geral e, a cada semana, decide "como usar as estruturas criadas para a crise sanitária em outros atendimentos", conta o prefeito.
"Quando falamos de SUS, não podemos só pensar na estrutura física, não só na presença ou ausência de leitos e respiradores, mas pensar na manutenção desse serviço, e isso é o que é mais caro. Então, manter a equipe funcionando, a estrutura, os custos de manutenção são altos, precisa de verbas perenes, definitivas", avalia o professor do curso de Medicina da UFC Sobral, João Paulo Tavares ao falar dos possíveis legados.
Depois
"O que foi adquirido por governo e prefeituras é material permanente e integrado ao patrimônio do estado. Logo, poderá plenamente atender, posteriormente, às demais demandas de outras causas", projeta a professora Thereza Maria Magalhães. Ação necessária, completa o médico Marcelo Gurgel, já que "no pior prognóstico, vamos ter pacientes que não deram entrada nos tratamentos, ou tiveram retardo no diagnóstico devido à pandemia. No pós-pandemia, o Estado terá que cobrir esse passivo. Vamos ter um preço a pagar", enfatiza.
O momento ainda é de muitas incertezas. Tanto porque a incidência da doença não desapareceu, e os casos se espalham por diversas de cidades do interior de forma crescente, como porque não se sabe o quanto da estrutura criada na Capital e demais cidades, de fato, ficará de legado.
Além dos recursos físicos - que ampliaram e modernizaram hospitais - , a pandemia trouxe ao sistema de saúde a possibilidade de otimizar rotinas e procedimentos, alterar o contato entre pacientes internados e familiares e enfatizou o papel de cada nível de atendimento, com relevância às UPAs e postos de saúde.
Pouco antes da marca dos 100 dias de Covid no Ceará, Rucley Cavalcante Braga mandou pendurar uma faixa de agradecimento aos profissionais da saúde no Hospital Leonardo da Vinci. Reconhecimento da resposta rápida que lhe foi dada quando precisou de cuidados. A torcida de Rucley e a expectativas de muitos é que nos 100 dias pós-pandemia e quem sabe depois, o direito à saúde e à assistência seja garantido mais e mais vezes. Até ser assegurado sempre. Por anos inteiros.