Cearenses votam em bairros e cidades natais para reviver memórias

No tradicional domingo, colégios eleitorais se tornam guardiões de vivências e lembranças de antigos moradores, que optam por não transferir locais de votação como forma de aproveitar para voltar às raízes

Escrito por Theyse Viana , theyse.viana@svm.com.br
Legenda: Carol votou pela primeira vez na escola onde estudou por oito anos, hoje fechada
Foto: FOTO: FABIANE DE PAULA


A cada dois anos, os costumeiros 220 km entre os municípios de Caucaia e Boa Viagem são percorridos com mais ânimo: é quase sempre véspera de domingo quando Vitória Gomes, 24, entra no carro rumo à cidade natal para escolher os políticos que vão representá-la pelos próximos anos. Mesmo não morando mais no interior, a cabeleireira se recusa a transferir o local de votação e, assim como outros tantos cearenses, aproveita outubros ou novembros de anos pares para unir o útil ao agradável: exercer a cidadania e revisitar memórias.

Vitória morou em Boa Viagem, no sertão do Ceará, até os 17 anos de idade. Foi quando escolheu se mudar para a Região Metropolitana de Fortaleza, junto com a avó, para conseguir entrar na faculdade. Hoje, mora sozinha, já que a companhia voltou ao interior – e é justamente essa realidade, a distância da casa dos seus, que a mantém tão ligada politicamente à cidade natal, recusando-se a transferir o título de eleitor para Caucaia.

“Sempre fui muito envolvida e gostei de política. É muito a cultura da minha cidade. Votar lá é também uma forma de cuidado, porque toda a minha família mora lá. Quando dou meu voto a alguém em que eu acredito que vai trazer mudanças, que traga propostas pro meu irmão não precisar sair de lá pra estudar como eu precisei, é gratificante”, justifica.

Além de ato político, manter o local de votação em Buenos Aires, distrito de Boa Viagem, é uma forma de garantir que, pelo menos a cada dois anos, vai voltar às raízes, à casa dos avós paternos, e continuar conhecendo um território tão dela. 

Afeto

“Sempre que eu vou, observo as mudanças. Minhas memórias são dos açudes de antigamente, das cachoeiras, acabados pela seca. A cidade toda mudou muito. Era tudo casa de taipa, e com o tempo foram se ajeitando. Não tinha saneamento básico, hoje já tem. As pessoas lavavam as roupas no açude, hoje as casas têm caixa-d’água. O pessoal tinha muito cavalo, hoje todos têm transportes. Até internet já pega lá!”, lista Vitória

A ligação político-afetiva com a cidade onde nasceu é compartilhada pelo professor universitário Fernando Luiz Marcelo Antunes, 64, que já não mora em Cascavel há mais de 30 anos, desde que saiu para estudar, mas nunca deixou de votar lá em um pleito sequer. O fato de ter tido pais envolvidos na política da localidade, ele assume, tem certa influência na afinidade irremediável que tem pelo território: mas o sentimento de pertença do cascavelense é ainda mais forte.

“Meus pais foram políticos lá, isso me dá uma proximidade, a política de Cascavel é muito forte pra mim. Mas, além disso, é minha terra, é minha cidade. Me sinto parte de lá. Às vezes, vou lá só almoçar e volto. Minhas raízes estão em Cascavel. Não quero nem pretendo transferir meu título nunca, me sinto mais representado lá do que aqui”, sentencia o professor, que, inclusive, integra um grupo de amigos intitulado “Colincas – Colegas de Infância de Cascavel”, com reuniões mensais fixas para “conversar, tomar cerveja e rir”.

A cidade, aliás, guarda não só o local de votação, mas a casa onde cresceu e outras tantas memórias. “Hoje, passo em frente à minha casa, era a única no meio do Centro, que só tinha comércio. Hoje vamos até vender, porque está desocupada. As praias lá… Tudo isso eu vejo quando vou e é memória pra mim, é muito forte. Tem uma página chamada ‘Cascavel Memórias’, e em toda foto publicada eu tenho um comentário a fazer. Passei a ver como eu conheço a cidade, como ela faz parte de mim”, emociona-se.

Quanto aos domingos de eleições, são eventos comparáveis ao carnaval. “Minha esposa vota aqui, em Fortaleza, e depois seguimos pra lá. Temos lá, todo ano, o ‘Carnaval da Saudade’, 15 dias antes do sábado de carnaval. Posso estar onde estiver, nesse dia eu tenho que estar em Cascavel. Nas eleições, é exatamente a mesma coisa”, diverte-se o cascavelense.

Ruptura

A sensação de pertencimento e de mergulho em lembranças foi a mesma vivenciada pela nutricionista Carolina Goes, 25, quando votou pela primeira vez, nas Eleições de 2014. A zona eleitoral era também espaço de recordações: as urnas ocupavam as salas de aula do Centro Educacional Cenecista Luzardo Viana, no Centro de Caucaia, onde Carol construiu conhecimentos e afetos por oito anos de vida. Em 2017, porém, após quase 60 anos de ensino, a instituição encerrou as atividades.
“Terminei o ensino médio lá. Foi a melhor época da minha vida, tenho amizades até hoje. Foi um sofrimento quando fechou. As gincanas, os grupos de estudo, os interclasses, até o estudo mesmo, tudo dá saudade. Todas as amizades que se iniciaram lá ficaram pra vida”, relata a ex-aluna, descrevendo, ainda, a nostalgia que vivenciou no primeiro pleito, junto aos amigos. 

“Como tiramos os títulos juntos, o local de votação de todo mundo era lá, e marcamos de ir no mesmo horário. ‘Tava’ tudo diferente, as salas em outra localização, mas quando entrei, relembrei tudo, passando pelos corredores... Até fico emocionada. Tudo lembrava os professores, diretores, os momentos. Foi maravilhoso”, recorda Carol, lamentando o fato de que, atualmente, mato e sujeira ocupam o espaço onde ela construiu a infância e a adolescência. Com o fechamento da escola, o título de eleitor foi vinculado a outra instituição, num bairro diferente, mesmo a contragosto da nutricionista. “Por mim, queria votar no Luzardo pelo resto da vida”, finaliza.

Mudanças

Carlos Mendes, 32, por outro lado, até tentou mudar o local de votação, quando foi registrar a biometria eleitoral, mas não conseguiu – insucesso que, hoje, é comemorado. O desenvolvedor de software habitou as ruelas do bairro Vicente Pinzón, na Regional II de Fortaleza, entre 1994 e 2017, quando se mudou. “Minha mãe mora lá, mas nos encontramos na minha irmã ou na minha casa, nunca lá. Ando pelo bairro a cada dois anos, a cada eleição. Depois que não deu certo mudar o título de lugar, deixei pra lá e até gostei”, confessa.
Em ano de eleições, então, os pés ampliam horizontes: não percorrem só os poucos metros quadrados do condomínio da mãe, mas também os corredores da escola onde Carlos jogava futebol com os amigos, na infância e na adolescência. “Na fila pra votar, sempre vejo muita gente, reencontro antigos amigos e vizinhos. Vejo também as mudanças na escolinha, como a educação era e como é hoje. Fico observando onde era um mercadinho e não é mais, onde morava um amigo e não mora mais. É muito bacana”, relata Carlos, indicando que as raízes, muitas vezes, permanecem vivas no solo da memória.

 

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